Considerações
sobre cultura em Herbert Marcuse e Walter Benjamin
Herbert Marcuse e Walter Benjamin, ambos filósofos, definiram
e conceituaram a ideia de cultura nas obras, de forma que é possível realizar
um diálogo entre eles.
O presente artigo discorre apenas (observando a
impossibilidade de esgotamento do tema) sobre alguns pontos importantes das
obras de Herbert Marcuse (1898-1979) e Walter Benjamin (1892-1940). Tais
autores conduzem suas obras a uma esfera crítica e reflexiva quanto ao
marxismo, abordando categorias e conceitos que ora dizem muito sobre as
consequências e rumos produtos da prática marxista do passado e do momento em
que escrevem (primeira metade do século XX), ora dizem muito quanto a uma
espécie de proposta ou releitura daquilo que poderia (ou não) e mereceria ser
feito. Logo, será da preocupação em sugerir e descortinar uma realidade
reificada e “contaminada” pela lógica capitalista que nascerão tais trabalhos,
num questionamento quanto às maneiras de se alcançar a efetiva tomada da
consciência de classe e, dessa forma, superar a conjuntura capitalista dada.
Num primeiro momento, peculiar a ambos os autores, há a
incômoda constatação não apenas do cerceamento dos meios e instrumentos que
poderiam levar à tomada da consciência –da “verdadeira” e necessária
consciência –, mas também à alienação produzida pela sociedade industrial consequente
de tal situação. O que chama a atenção desses teóricos (como da Escola de
Frankfurt de maneira em geral) é a maneira com que os partidos de ideologia
marxista (como na Alemanha) lidaram com a reificação da sociedade e das
relações sociais/de trabalho após terem alcançado o poder (desembocando mais
tarde em regimes totalitários, fascistas), bem como a forma com que leram o
materialismo histórico para a luta da classe proletária, para alcance da
consciência de classe.
Além disso, cultura, história, arte, literatura, enfim, são
alguns dos conceitos que permeiam as obras de Marcuse e Benjamin, e que aqui
possibilitaram uma espécie de diálogo (até onde isso é possível) entre tais
autores, uma vez que esses temas guardam entre si características comuns no
tocante à promoção do esclarecimento e tomada de consciência do indivíduo numa
sociedade industrial moderna.
Segundo Marcuse, relegados ao âmbito da cultura estariam a
literatura, as artes, a filosofia e a religião, todas de certa forma apartadas
daquilo que ele chamou de práxis social, a qual por sua vez seria uma série de
“práticas” e condutas pertinentes ao desenvolver das atividades do dia a dia.
Nas suas palavras, a cultura seria identificada como o complexo de objetivos e
valores morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma sociedade como
meta da organização, da divisão e da direção de seu trabalho, havendo metas
culturais e meios factuais. Assim, a cultura se relacionaria a uma dimensão
superior, da autonomia e da realização humana, enquanto a práxis social (ou o
que Marcuse chama de “Civilização”) indicaria o âmbito da necessidade, do
trabalho e do comportamento socialmente necessários. Ao passo que o conceito de
progresso (progresso técnico propriamente dito) vai se estabelecendo cada vez
mais no reino das necessidades e formas de trabalho do homem, essa relação
entre “cultura superior” e práxis social vai se transformando. Será com a
complexalização das práticas capitalistas e, dessa forma, com o aumento do
processo de reificação da sociedade (que até certo ponto respondem por este
progresso) que haverá uma verdadeira incorporação e imbricação da práxis social
e da cultura, resultando negativamente nesta última, principalmente se levar em
conta seus objetivos transcendentes, aponta Marcuse (1998).
Dessa maneira, Marcuse vai fazer uma espécie de
apologia à forma como a filosofia do passado era entendida, mais precisamente
no tocante à sua característica básica de propor a reflexão acerca do mundo e
do homem, dentro de um constante sentimento deste último de mal estar com a
sociedade, sua posição, sua ação. Com a reorientação dos moldes das relações de
sociais e trabalho, com o recrudescimento das formas capitalistas de produção,
essa mesma “cultura superior” (da reflexão, do contestamento, construída por um
espírito imbuído de um caráter antagônico a ordem) se torna ideológica,
utópica, sendo dominada pela lógica utilitarista e de operacionalismo do
pensamento vigente da sociedade industrializada. Em outras palavras, ela se
rende e perde seu caráter questionador.
Na lógica da sociedade industrial moderna, as necessidades
são redefinidas, da mesma forma que os valores que norteiam e orientam os
homens. Estes são capazes de se mobilizar para a guerra ou despender forças em
conjunto para a defesa e a manutenção do sistema, reproduzindo alienadamente
uma ordem que definiu para eles suas “verdadeiras” necessidades. Em outras
palavras, os indivíduos sob o efeito dessa submissão aos meios de organização
da vida (organização esta dada pela sujeição à cultura ao progresso científico
como ordem do dia) na sociedade industrial a tomam como verdade, como fato
dado. Será esse comportamento que produzirá um descomprometimento ou
atrofiamento ao exercício da reflexão e do questionamento, uma vez que aquela capacidade
de outrora do refreamento está sufocada.
Ao passo que as ciências (naturais e humanas), os valores, a
“cultura e a civilização” se nivelam, destroem-se as possibilidades de
contestação e de mudança. Esse prejuízo do espírito ligado à reflexão e ao
questionamento reflete nas condições de tomada da consciência de classe, a qual
é lida como caminho à contestação da ordem estabelecida. O acesso à cultura
pela cultura não significaria necessariamente emancipação, uma vez que esta
seria reproduzida pela própria burguesia, logo imbuída de seus valores,
afirmação essa que se vê também em Benjamin. Para mudar essa situação, seria
necessária uma mudança social das necessidades vitais (que foram remodeladas
com o capitalismo). A libertação, ou retomada dessa, propõe o que Marcuse
chamou de reparação da dimensão cultural perdida com tal “progresso” que no
passado, no âmago daquela cultura superior na fala desse autor, estava
protegido da violência totalitária.
Quando Benjamin vai propor conhecer uma obra de arte, uma
produção artística, como um resgate de algo que ocorrera e vive ainda no
presente, aproxima-se de Marcuse no que diz respeito ao repúdio desse
evolucionismo e nivelamento –como das ciências –advindos da sociedade moderna,
estando no passado uma “lição” que leva à reflexão. Se para Marcuse a
manutenção do que chamou de cultura superior ou pura é interessante no tocante
à preservação de seu potencial como via antagônica à ordem dada com a sociedade
industrial, para Benjamin é essencial ter-se no conceito de história não uma
construção cujo lugar é o tempo homogêneo e retilíneo, mas sim um tempo
saturado de “agoras”, para neles se compreender o presente e agir.
Enquanto ao historicista cabe uma imagem eterna do passado,
cabe ao materialista histórico a conotação de uma experiência única a este
mesmo passado. O puro historicista (e a ele se dirige a crítica direta de
Benjamin) contenta-se em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da
história, como uma colcha de retalhos, isto é, dentro da lógica que remete a
ideia de evolução e progresso, desconsiderando a influência ou repetição do
passado no presente. “A idéia de um progresso da humanidade na história é
inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A
crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa
marcha”(BENJAMIN, 1985, p. 229).
Assim, é preciso valorizar as experiências passadas que o
evolucionismo desconsidera, uma vez que a história é retilínea para este. Esse
seria o caminho equivocado tomado por uma leitura historicista da cultura,
fazendo com que esta última não revele de forma transparente a mensagem de
cunho emancipador de cada obra, por ora “adormecida”. Benjamin vai chamar a
atenção à possibilidade de uma teoria materialista da cultura. Para construir
uma tradição, ele pretendeu ir além do aspecto político do marxismo, uma vez
que as questões ligadas ao domínio da cultura teriam ficado em um segundo
plano. Retomou Engels e, em contrapartida, fez uma interpretação diferente da
II Internacional, uma vez que esta admitia um evolucionismo e um progresso ao
longo da história, simpatizando-se com estes. Para Benjamin, a forma como se
estudava a história da cultura por nomes como Eduard Furchs, colecionador e
historiador, era equivocada, uma vez que o que se produzia, nas suas palavras,
era uma ciência de caráter museológico. Tornava-se a manter um inventário de
obras, mostrando sua “evolução”, tomando a história como colcha de retalhos.
Carecia-se de uma ciência que renunciasse a isso, e a ela deu o nome de
“materialismo dialético”.
Assim, para Benjamin, é possível afirmar haver uma
teoria materialista da cultura, o que pressupõe de maneira geral que toda a
ideia de evolucionismo presente nas leituras do materialismo histórico de outrora
(e do modo burguês de fazer história) caia por terra, evolucionismo este que
mais tarde fomentaria a cega crença no progresso apresentada pelo Partido
Social Democrata.
Logo, tanto para Marcuse quanto para Benjamin, a maneira como
se reproduzem o “fazer história” (para o último) e o “pensar” da cultura (para
o primeiro) dessa sociedade capitalista acabam por fomentar um distanciamento
da real tomada de consciência da realidade. Esse grau de “desenvolvimento” a
que chegou a sociedade presente (burguesa, industrial), com o viés de uma
lógica progressista e evolucionista, não apenas mudou a função tradicional dos
elementos culturais que moldavam os valores éticos e morais, mas também
camuflou as reminiscências (e respostas) do passado contidas nas obras de arte,
permitindo, consequentemente, que o poder de contestação (do indivíduo) se
enfraquecesse.
A cultura é redefinida pela ordem existente: as palavras, os
tons, as cores e as formas das obras sobreviventes permanecem as mesmas, porém
aquilo que expressam perde sua verdade, sua validade; as obras que antes se
destacavam escandalosamente da realidade existente e estavam contra ela foram
neutralizadas como clássicas; com isso já não conservam sua alienação da
sociedade alienada (MARCUSE, 1998, p.161).
Logo, a forma como é construída a cultura para Marcuse e a
maneira em que se dá a reprodução de um historicismo da cultura (de cunho
evolucionista) para Benjamin impedem a tomada da consciência de classe.
No entanto, a defesa do acesso da cultura pela cultura não
resultaria de fato na emancipação do indivíduo. Nessa lógica dos pensamentos de
Marcuse e Benjamin, a máxima do “saber é poder” acaba por ser questionada, pois
a cultura que é elaborada no presente tem um viés de mentalidade burguesa.
Seria necessário politizar a cultura, politização esta que se dá na escolha e
nas condições de reprodução e apresentação da arte. Toda obra e produção
cultural nesse cenário de forte imbricação da cultura e da práxis social (isto
é, de nivelamento dessas esferas e de extrema racionalização da vida) é
apresentada de forma destacada de sua história, escondendo as relações que
guarda com seu contexto quando de sua confecção, isto é, não tornando claro o
resgate das experiências de outrora como aprendizado, experiências estas necessárias
para a mudança social como sugerido por Marcuse. Assim, na fala de
Benjamin, como não se leva em consideração essa politização na sua produção (da
obra), não se levará em conta sua reprodução, e dessa forma, esquece-se que no
âmbito do capitalismo, a reprodução da obra acaba por torná-la uma
mercadoria.
É essa preocupação com a supressão do potencial político da
cultura que permeia tanto a obra de Benjamin quanto a de Marcuse. Nesse sentido
também se dará a crítica ao Partido Social Democrata, o qual defende esse
discurso (do acesso à cultura) como o caminho para luta. Benjamin vai dizer que
a base para a construção dessa visão da cultura vem a reboque da concepção de
história, vista de forma retilínea e homogênea, não se dando conta da barbárie
(dada pelas condições do desenvolvimento) que se fazia presente; barbárie esta
que refletiu na perda do Partido Social democrata do comando do Estado para a
implementação de um regime totalitário. “A teoria e, mais ainda, a prática da
social democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem
qualquer vínculo com a realidade” (BENJAMIN,1985, p. 229). O objetivo da Social
democracia era o mesmo em relação à ciência, vista como emancipadora e
orientadora, e, dessa forma, deveria se tornar algo próximo ao povo. Essa
lógica sugeria que a cultura por si só desse poder ao povo, emancipando-o. Na
contramão dessa afirmação, Benjamin e Marcuse afirmam que essa cultura
construída pela “ciência burguesa”, como diria Lukács (2003), não seria válida,
mas que se deveria buscar algo no passado para se pensar o presente buscando a
promoção de uma ação. Daí a redefinição do conceito de história ser o ponto
alto da obra de Benjamin, o qual vai propor a observação da história a
contrapelo rompendo com a linearidade dos evolucionismos.
Grosso modo, Benjamin critica a ação do Partido
apontando o equívoco do conceito de história defendido, que reflete no modo da
reprodução da cultura e sua assimilação e, dessa forma, divide com Marcuse
tanto a valorização da retomada das condições (experiências) de outrora para
descortinar essa sociedade reificada, quanto o diagnostico que vê a supressão e
a “despolitização” da cultura ao passo do progresso. Assim, o conceito de
história que era fundamental para o marxismo (haja vista o materialismo
histórico) deveria ser reformulado, assim como o próprio discurso marxista o
deveria ser, pois a luta de classe estava inserida nestes conceitos: na
história e na cultura.
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