terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Entendendo...


Considerações sobre cultura em Herbert Marcuse e Walter Benjamin
Herbert Marcuse e Walter Benjamin, ambos filósofos, definiram e conceituaram a ideia de cultura nas obras, de forma que é possível realizar um diálogo entre eles.
O presente artigo discorre apenas (observando a impossibilidade de esgotamento do tema) sobre alguns pontos importantes das obras de Herbert Marcuse (1898-1979) e Walter Benjamin (1892-1940). Tais autores conduzem suas obras a uma esfera crítica e reflexiva quanto ao marxismo, abordando categorias e conceitos que ora dizem muito sobre as consequências e rumos produtos da prática marxista do passado e do momento em que escrevem (primeira metade do século XX), ora dizem muito quanto a uma espécie de proposta ou releitura daquilo que poderia (ou não) e mereceria ser feito. Logo, será da preocupação em sugerir e descortinar uma realidade reificada e “contaminada” pela lógica capitalista que nascerão tais trabalhos, num questionamento quanto às maneiras de se alcançar a efetiva tomada da consciência de classe e, dessa forma, superar a conjuntura capitalista dada.
 Num primeiro momento, peculiar a ambos os autores, há a incômoda constatação não apenas do cerceamento dos meios e instrumentos que poderiam levar à tomada da consciência –da “verdadeira” e necessária consciência –, mas também à alienação produzida pela sociedade industrial consequente de tal situação. O que chama a atenção desses teóricos (como da Escola de Frankfurt de maneira em geral) é a maneira com que os partidos de ideologia marxista (como na Alemanha) lidaram com a reificação da sociedade e das relações sociais/de trabalho após terem alcançado o poder (desembocando mais tarde em regimes totalitários, fascistas), bem como a forma com que leram o materialismo histórico para a luta da classe proletária, para alcance da consciência de classe.
Além disso, cultura, história, arte, literatura, enfim, são alguns dos conceitos que permeiam as obras de Marcuse e Benjamin, e que aqui possibilitaram uma espécie de diálogo (até onde isso é possível) entre tais autores, uma vez que esses temas guardam entre si características comuns no tocante à promoção do esclarecimento e tomada de consciência do indivíduo numa sociedade industrial moderna. 
Segundo Marcuse, relegados ao âmbito da cultura estariam a literatura, as artes, a filosofia e a religião, todas de certa forma apartadas daquilo que ele chamou de práxis social, a qual por sua vez seria uma série de “práticas” e condutas pertinentes ao desenvolver das atividades do dia a dia. Nas suas palavras, a cultura seria identificada como o complexo de objetivos e valores morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma sociedade como meta da organização, da divisão e da direção de seu trabalho, havendo metas culturais e meios factuais. Assim, a cultura se relacionaria a uma dimensão superior, da autonomia e da realização humana, enquanto a práxis social (ou o que Marcuse chama de “Civilização”) indicaria o âmbito da necessidade, do trabalho e do comportamento socialmente necessários. Ao passo que o conceito de progresso (progresso técnico propriamente dito) vai se estabelecendo cada vez mais no reino das necessidades e formas de trabalho do homem, essa relação entre “cultura superior” e práxis social vai se transformando. Será com a complexalização das práticas capitalistas e, dessa forma, com o aumento do processo de reificação da sociedade (que até certo ponto respondem por este progresso) que haverá uma verdadeira incorporação e imbricação da práxis social e da cultura, resultando negativamente nesta última, principalmente se levar em conta seus objetivos transcendentes, aponta Marcuse (1998).
 Dessa maneira, Marcuse vai fazer uma espécie de apologia à forma como a filosofia do passado era entendida, mais precisamente no tocante à sua característica básica de propor a reflexão acerca do mundo e do homem, dentro de um constante sentimento deste último de mal estar com a sociedade, sua posição, sua ação. Com a reorientação dos moldes das relações de sociais e trabalho, com o recrudescimento das formas capitalistas de produção, essa mesma “cultura superior” (da reflexão, do contestamento, construída por um espírito imbuído de um caráter antagônico a ordem) se torna ideológica, utópica, sendo dominada pela lógica utilitarista e de operacionalismo do pensamento vigente da sociedade industrializada. Em outras palavras, ela se rende e perde seu caráter questionador.
Na lógica da sociedade industrial moderna, as necessidades são redefinidas, da mesma forma que os valores que norteiam e orientam os homens. Estes são capazes de se mobilizar para a guerra ou despender forças em conjunto para a defesa e a manutenção do sistema, reproduzindo alienadamente uma ordem que definiu para eles suas “verdadeiras” necessidades. Em outras palavras, os indivíduos sob o efeito dessa submissão aos meios de organização da vida (organização esta dada pela sujeição à cultura ao progresso científico como ordem do dia) na sociedade industrial a tomam como verdade, como fato dado. Será esse comportamento que produzirá um descomprometimento ou atrofiamento ao exercício da reflexão e do questionamento, uma vez que aquela capacidade de outrora do refreamento está sufocada.   
Ao passo que as ciências (naturais e humanas), os valores, a “cultura e a civilização” se nivelam, destroem-se as possibilidades de contestação e de mudança. Esse prejuízo do espírito ligado à reflexão e ao questionamento reflete nas condições de tomada da consciência de classe, a qual é lida como caminho à contestação da ordem estabelecida. O acesso à cultura pela cultura não significaria necessariamente emancipação, uma vez que esta seria reproduzida pela própria burguesia, logo imbuída de seus valores, afirmação essa que se vê também em Benjamin. Para mudar essa situação, seria necessária uma mudança social das necessidades vitais (que foram remodeladas com o capitalismo). A libertação, ou retomada dessa, propõe o que Marcuse chamou de reparação da dimensão cultural perdida com tal “progresso” que no passado, no âmago daquela cultura superior na fala desse autor, estava protegido da violência totalitária.
Quando Benjamin vai propor conhecer uma obra de arte, uma produção artística, como um resgate de algo que ocorrera e vive ainda no presente, aproxima-se de Marcuse no que diz respeito ao repúdio desse evolucionismo e nivelamento –como das ciências –advindos da sociedade moderna, estando no passado uma “lição” que leva à reflexão. Se para Marcuse a manutenção do que chamou de cultura superior ou pura é interessante no tocante à preservação de seu potencial como via antagônica à ordem dada com a sociedade industrial, para Benjamin é essencial ter-se no conceito de história não uma construção cujo lugar é o tempo homogêneo e retilíneo, mas sim um tempo saturado de “agoras”, para neles se compreender o presente e agir.
Enquanto ao historicista cabe uma imagem eterna do passado, cabe ao materialista histórico a conotação de uma experiência única a este mesmo passado. O puro historicista (e a ele se dirige a crítica direta de Benjamin) contenta-se em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história, como uma colcha de retalhos, isto é, dentro da lógica que remete a ideia de evolução e progresso, desconsiderando a influência ou repetição do passado no presente. “A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha”(BENJAMIN, 1985, p. 229).
Assim, é preciso valorizar as experiências passadas que o evolucionismo desconsidera, uma vez que a história é retilínea para este. Esse seria o caminho equivocado tomado por uma leitura historicista da cultura, fazendo com que esta última não revele de forma transparente a mensagem de cunho emancipador de cada obra, por ora “adormecida”. Benjamin vai chamar a atenção à possibilidade de uma teoria materialista da cultura. Para construir uma tradição, ele pretendeu ir além do aspecto político do marxismo, uma vez que as questões ligadas ao domínio da cultura teriam ficado em um segundo plano. Retomou Engels e, em contrapartida, fez uma interpretação diferente da II Internacional, uma vez que esta admitia um evolucionismo e um progresso ao longo da história, simpatizando-se com estes. Para Benjamin, a forma como se estudava a história da cultura por nomes como Eduard Furchs, colecionador e historiador, era equivocada, uma vez que o que se produzia, nas suas palavras, era uma ciência de caráter museológico. Tornava-se a manter um inventário de obras, mostrando sua “evolução”, tomando a história como colcha de retalhos. Carecia-se de uma ciência que renunciasse a isso, e a ela deu o nome de “materialismo dialético”.
 Assim, para Benjamin, é possível afirmar haver uma teoria materialista da cultura, o que pressupõe de maneira geral que toda a ideia de evolucionismo presente nas leituras do materialismo histórico de outrora (e do modo burguês de fazer história) caia por terra, evolucionismo este que mais tarde fomentaria a cega crença no progresso apresentada pelo Partido Social Democrata.
Logo, tanto para Marcuse quanto para Benjamin, a maneira como se reproduzem o “fazer história” (para o último) e o “pensar” da cultura (para o primeiro) dessa sociedade capitalista acabam por fomentar um distanciamento da real tomada de consciência da realidade. Esse grau de “desenvolvimento” a que chegou a sociedade presente (burguesa, industrial), com o viés de uma lógica progressista e evolucionista, não apenas mudou a função tradicional dos elementos culturais que moldavam os valores éticos e morais, mas também camuflou as reminiscências (e respostas) do passado contidas nas obras de arte, permitindo, consequentemente, que o poder de contestação (do indivíduo) se enfraquecesse.
A cultura é redefinida pela ordem existente: as palavras, os tons, as cores e as formas das obras sobreviventes permanecem as mesmas, porém aquilo que expressam perde sua verdade, sua validade; as obras que antes se destacavam escandalosamente da realidade existente e estavam contra ela foram neutralizadas como clássicas; com isso já não conservam sua alienação da sociedade alienada (MARCUSE, 1998, p.161).
Logo, a forma como é construída a cultura para Marcuse e a maneira em que se dá a reprodução de um historicismo da cultura (de cunho evolucionista) para Benjamin impedem a tomada da consciência de classe.
No entanto, a defesa do acesso da cultura pela cultura não resultaria de fato na emancipação do indivíduo. Nessa lógica dos pensamentos de Marcuse e Benjamin, a máxima do “saber é poder” acaba por ser questionada, pois a cultura que é elaborada no presente tem um viés de mentalidade burguesa. Seria necessário politizar a cultura, politização esta que se dá na escolha e nas condições de reprodução e apresentação da arte. Toda obra e produção cultural nesse cenário de forte imbricação da cultura e da práxis social (isto é, de nivelamento dessas esferas e de extrema racionalização da vida) é apresentada de forma destacada de sua história, escondendo as relações que guarda com seu contexto quando de sua confecção, isto é, não tornando claro o resgate das experiências de outrora como aprendizado, experiências estas necessárias para a mudança social como sugerido por Marcuse.  Assim, na fala de Benjamin, como não se leva em consideração essa politização na sua produção (da obra), não se levará em conta sua reprodução, e dessa forma, esquece-se que no âmbito do capitalismo, a reprodução da obra acaba por torná-la uma mercadoria.  
É essa preocupação com a supressão do potencial político da cultura que permeia tanto a obra de Benjamin quanto a de Marcuse. Nesse sentido também se dará a crítica ao Partido Social Democrata, o qual defende esse discurso (do acesso à cultura) como o caminho para luta. Benjamin vai dizer que a base para a construção dessa visão da cultura vem a reboque da concepção de história, vista de forma retilínea e homogênea, não se dando conta da barbárie (dada pelas condições do desenvolvimento) que se fazia presente; barbárie esta que refletiu na perda do Partido Social democrata do comando do Estado para a implementação de um regime totalitário. “A teoria e, mais ainda, a prática da social democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade” (BENJAMIN,1985, p. 229). O objetivo da Social democracia era o mesmo em relação à ciência, vista como emancipadora e orientadora, e, dessa forma, deveria se tornar algo próximo ao povo. Essa lógica sugeria que a cultura por si só desse poder ao povo, emancipando-o. Na contramão dessa afirmação, Benjamin e Marcuse afirmam que essa cultura construída pela “ciência burguesa”, como diria Lukács (2003), não seria válida, mas que se deveria buscar algo no passado para se pensar o presente buscando a promoção de uma ação. Daí a redefinição do conceito de história ser o ponto alto da obra de Benjamin, o qual vai propor a observação da história a contrapelo rompendo com a linearidade dos evolucionismos.
 Grosso modo, Benjamin critica a ação do Partido apontando o equívoco do conceito de história defendido, que reflete no modo da reprodução da cultura e sua assimilação e, dessa forma, divide com Marcuse tanto a valorização da retomada das condições (experiências) de outrora para descortinar essa sociedade reificada, quanto o diagnostico que vê a supressão e a “despolitização” da cultura ao passo do progresso. Assim, o conceito de história que era fundamental para o marxismo (haja vista o materialismo histórico) deveria ser reformulado, assim como o próprio discurso marxista o deveria ser, pois a luta de classe estava inserida nestes conceitos: na história e na cultura.

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