Último
volume de coleção de história diz que chagas da ditadura de 1964 são encobertas
Evento não foi só produto da caserna,
defende historiador em livro bancado por fundação espanhola
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.
Paulo
Último volume da coleção História do Brasil
Nação, bancada pela Fundación Mapfre e organizada pela historiadora Lilia
Moritz Schwarcz, o livro Modernização, Ditadura e Democracia chega em abril às
livrarias para apimentar a polêmica sobre o golpe que instaurou há 50 anos uma
ditadura no País.
Rejeitando o argumento de que foi uma
revolução engendrada exclusivamente na caserna, o coordenador da obra, Daniel
Aarão Reis rebate teses históricas e diz que se tratou, antes, de uma aliança
"heterogênea e disparatada" entre militares, líderes políticos,
empresariais e religiosos.
Cobrindo o período que vai do golpe aos dias
de hoje, o livro incorpora as grandes manifestações sociais registradas em todo
o País desde junho do ano passado, reprimidas como na época do regime militar.
Para discutir a coleção, que começa em 1808,
ano da transferência da corte portuguesa, o Caderno 2 entrevistou a
historiadora Lilia Schwarcz e o coordenador do quinto volume, que tem entre
seus colaboradores o economista Paul Singer.
Lilia Schwarcz escolheu os 27 autores
presentes nos volumes. Há um extra, só de fotos, Um Olhar Sobre o Brasil,
organizado por Boris Kossoy. Ele traz imagens como a que ilustra esta página,
de Evandro Teixeira, feita no Rio, em 1964.
O que aconteceu, de fato, nesse ano, quando
o golpe militar levou à Presidência da República o general cearense Castelo
Branco? Medo de uma guerra civil? Paranoia anticomunista? As respostas são
muitas, mas desencontradas.
A facilidade com que o presidente João
Goulart (1919-1976) foi destituído em 1964 e como o governo militar se instalou
no poder é uma questão que merece melhor exame, diz o historiador Daniel Aarão
Reis, ele mesmo perseguido na época pelo regime, que agora examina em
Modernização, Ditadura e Democracia, quinto volume da coleção História do
Brasil Nação, bancada pela espanhola Fundación Mapfre e coordenada pela
historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Na versão oficial da história, "as
direitas venceram porque eram mais poderosas e as esquerdas, mais desorganizadas,
incapazes de lutar". Aarão Reis, autor de uma biografia (inédita) do líder
comunista Luís Carlos Prestes para a Companhia das Letras, diz que não foi bem
assim.
O golpe que instaurou a ditadura em 1964,
segundo ele, "exprimiu uma heterogênea aliança, reunindo líderes
políticos, empresariais e religiosos, civis e militares, elites sociais e
segmentos populares". E como essa minoria de golpistas conseguiu paralisar
sem luta todo um país? Por que sem um único tiro instauraram a ditadura que
durou de 1964 a 1979? Os golpistas, movidos pelo medo de reformas
revolucionárias, argumenta o autor, usaram a "defesa da democracia e do
cristianismo" como escudo. Contra a baderna e o medo que o Brasil copiasse
o modelo comunista cubano, a nação trocou as alpargatas pelos coturnos.
Democracia. Daniel Aarão lembra que
"salvar" a democracia, para muitos, "passava pela extirpação do
getulismo e a eliminação dos comunistas" (leia entrevista ao lado). Era
preciso que o golpe fosse transformado numa "revolução" - e foi
justamente o que fez a Junta Militar, em nome do comando da Revolução de 1964,
editando o Ato Institucional de número 1, em abril daquele ano, o primeiro de
uma série de quatro baixados durante o governo do general Castelo Branco, que
permitia cassar mandatos e suspender direitos políticos. O militar cearense,
lembra o historiador, cassou mandatos, mas prorrogou o seu até 1967, ano de sua
misteriosa morte, criando ainda o Serviço Nacional de Informações (SNI), centro
de espionagem que levou à tortura os oponentes do regime.
O quinto volume da coleção foi dividido pelo
coordenador em cinco partes, cada uma delas assinada por especialistas em suas
respectivas áreas. Paul Singer analisa o período entre o "milagre
econômico" do regime militar e a crise financeira mundial de 2008,
enquanto Marcelo Ridenti traça um panorama do momento da virada rumo à
massificação da cultura. Os outros três pesquisadores são Herbert S. Klein,
Francisco Vidal Luna e Francisco Carlos Teixeira da Silva, todos eles com
visões bem diferentes das interpretações consagradas a respeito da época.
Foi em 2009 que a fundação espanhola Mapfre
encomendou essa coleção sobre a história do Brasil a Lilia Schwarcz, parte de
um ambicioso projeto editorial, América Latina na História Contemporânea,
publicado em dez países com a participação de 400 especialistas. Ela deveria
contemplar a formação da nação brasileira, o que levou a historiadora a
escolher o ano de 1808, o da transferência da corte portuguesa para o Brasil,
como o marco zero da coleção, que tem, entre seus autores, respeitados nomes.
Entre eles estão os historiadores e diplomatas Alberto da Costa e Silva e José
Murilo de Carvalho, o jurista Rubens Ricupero, o escritor Jorge Caldeira e a
própria organizadora da coleção (no volume que vai da proclamação da República
a 1930).
A coleção da Fundación Mapfre feita nos
outros países latinos é ilustrada, mas só a edição brasileira tem um livro
separado - e luxuoso - com a iconografia do período, entre 1808 e a primeira
eleição de Lula. Um Olhar Sobre o Brasil - A Fotografia na Construção da Imagem
da Nação, coordenado pelo fotógrafo Boris Kossoy, traz registros antológicos de
grandes profissionais da área, de Augusto Stahl a Sebastião Salgado, contando
com 350 documentos, sendo o mais antigo de 1850.
Imagens. Lilia Schwarcz, grande entusiasta
da análise histórica a partir da iconografia, fez questão de um volume à parte
(e não um anexo) justamente por entender que pinturas e fotos são tão
importantes para o estudo da História como as cartas e outros documentos
escritos. "Tenho defendido que as imagens conduzem à reflexão, não são
simples ilustrações", diz, condenando a relação de subalternidade da
imagem ao texto nos livros de história.
Seu modelo, evidentemente, é o austríaco
Ernst Hans Josef Gombrich (1909-2011), o historiador de arte que operou dentro
de um território não demarcado, estabelecendo um rico diálogo entre arte,
ciência, filosofia e psicologia. Gombrich defendia que as imagens geram imagens
e que esse fluxo de relações conduz a uma cultura visual intimamente ligada à memória
- ou à história, no caso.
Exemplos vigorosos da seleção de imagens do
quinto volume são duas fotos históricas: a da Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, realizada em 2 de abril de 1964, no Rio, e o comício das reformas de
base do dia 13 de março daquele ano, congregando as forças de esquerda sob a
liderança de Goulart. Lá está visível o embrião do golpe que instaurou uma
ditadura de 15 anos - contra a historiografia oficial, o autor diz que ela
acabou em 1979 com a revogação dos atos institucionais.
As fotos também mostram a transformação de
um país agrário numa nação urbana, aberta para o mundo e dirigida por uma
mulher, depois de presidida por um sociólogo e um operário, algo impensável em
1964. Aarão Reis admite que houve mudanças, "mas tiveram, e têm ainda um
alto custo", como o "trauma dos milhões arrancados de seus lugares de
origem e obrigados a migrar" e a tortura, "que continua sendo
praticada por agentes do Estado". E conclui: "Enganam-se os que
pensam que a onda (de manifestações) de 2013 acabou. Penso que ela tende a
retornar mais cedo do que tarde".
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