O
OLHO E O ESPÍRITO
A
ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-la. Fabrica para sim modelos
internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações
permitidas por sua definição, só de longe em longe se defronta com o mundo
atual. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso,
desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como ?objeto em geral?, isto é,
a um tempo como se ele nada fosse para nós, e, no entanto, se achasse
predestinado aos nossos artifícios.
Mas a ciência clássica guardava o sentimento da opacidade do mundo, era a este que ela pretendia juntar-se por suas construções, e por isso é que acreditava obrigada a procurar para suas operações um fundamento transcendente ou transcendental. Há, hoje em dia ? não na ciência, e sim numa filosofia das ciências assaz difundida -, isto de inteiramente novo: que a prática construtiva se toma e se dá por autônoma, e que o pensamento deliberadamente se reduz ao conjunto das técnicas de tomada ou de captação, que ele inventa. Pensar é ensaiar, operar, transformar, sob a única reserva de um controle experimental onde só intervêm fenômenos altamente ?trabalhados?, e que os nossos aparelhos produzem, em vez de registrá-los. Daí toda sorte de tentativas desordenadas. Nunca, como hoje, a ciência foi sensível às modas intelectuais. Quando um modelo foi bem sucedido numa ordem de problemas, ela o experimenta em toda parte. Nossa embriologia, nossa biologia estão agora repletas de gradientes , sem que se veja bem como se distinguem daquilo que os clássicos chamavam ordem ou totalidade; todavia, esta questão não é formulada, não deve sê-lo. O gradiente é uma rede que se lança ao mar se saber o que ela recolherá. Ou ainda, é débil ramo sobre o qual se farão cristalizações imprevisíveis. Esta liberdade de operação certamente está em situação de superar muitos dilemas, vãos, contanto que, de quando em vez, se faça o ajustamento, pergunta-se por que o instrumento funciona aqui e fracassa alhures; em suma, contanto que essa ciência fluente se compreenda a si mesma, se veja como construção sobre a base de um mundo bruto ou existente, e não reivindique para operações cegas o valor constituinte que os ?conceitos da natureza? podiam ter numa filosofia idealista. Dizer que o mundo é, por definição nominal, o objeto X das nossas operações é levar ao absoluto a situação de conhecimento do sábio, como se tudo o que foi ou é nunca houvesse sido senão para entrar no laboratório. O pensamento ?operatório? torna-se uma espécie de artificialismo absoluto, como se vê na ideologia cibernética, onde as criações humanas são derivadas de um processo natural de informação, porém concebido, por sua vez, segundo o modelo das máquinas humanas. Se este gênero de pensamento toma a seu cargo o Homem e a História, e se, fingindo ignorar o que deles sabemos por contato e por posição, empreende construí-los a partir de alguns indícios abstratos [...], visto que o homem se torna verdadeiramente o manipulandum que ele pensa ser, entra-se um regime de cultura onde já não há nem verdadeiro nem falso no tocante ao Homem e à História, num sono ou num pesadelo do qual nada poderia acordá-lo.
É preciso que, com meu corpo, despertem os corpos associados, os ?outros?, que não são meus congêneres [...]. Nesta historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a insistir nas próprias coisas e em sim mesmo tornará a ser filosofia...
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
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