sexta-feira, 1 de junho de 2012

Democracia?


Democracia e hegemonia petista

Nos anos 1970, Norberto Bobbio, filósofo de fina estirpe liberal-socialista, lançou um contundente repto ao velho Partido Comunista Italiano (PCI). Segundo Bobbio, com toda a sua sofisticação enraizada na matriz gramsciana e no conhecimento por ela proporcionado do problema nacional italiano, derivado de uma reunificação tardia e "passiva", nem sequer o PCI escapava da tradição estreita da Internacional Comunista, para a qual o objetivo central da tomada do poder levava a privilegiar o partido revolucionário e a desconhecer as mediações institucionais modernas, como, entre outras, o Estado Democrático.
Prevalecia, no dizer de Bobbio, uma visão instrumental do Estado e, mais em geral, das formas do processo político, o que requeria dos intelectuais comunistas uma explícita reelaboração dos temas da sua tradição. O repto de Bobbio não era pouca coisa nem estava endereçado a um partido intelectualmente tosco. Ao contrário, gente como Pietro Ingrao, Giuseppe Vacca, Umberto Cerroni, Cesare Luporini e outros participaram ativamente daquele debate que versava, em última instância, sobre as relações entre marxismo e Estado ou, mais precisamente, as possibilidades de mudança social num país que já não estava na periferia do capitalismo.
O mundo girou, e quase meio século nos separa irreparavelmente daquelas discussões. A Itália e a Europa assistiram, se não à demolição, pelo menos a um forte questionamento das próprias estruturas da social-democracia, que, segundo o PCI dos anos 1970, mereciam ser oxigenadas por novos movimentos de "socialização da política" na direção de um equilíbrio mais avançado. O problema da época - que parecia ser a "transição para o socialismo" em países de ponta - desapareceria por muitos anos diante da ofensiva das forças e das ideologias de mercado, que, essas, sim, por bem ou por mal, dariam à sua maneira uma resposta às dificuldades de financiamento do Estado de bem-estar social erguido no segundo pós-guerra.
Nem por isso se pode dizer que aquelas preocupações suscitadas por Bobbio estejam definitivamente arquivadas num baú de ossos. Ao contrário, os fortes abalos que têm varrido o mundo da globalização neoliberal repuseram ou confirmaram a esquerda no poder, inclusive no Brasil. Houve quem considerasse, nos últimos anos, que o "trem da História", se ainda valer a velha imagem determinista, se tivesse reposto em movimento a partir da América Latina. No Brasil, repito, um potente partido de esquerda, ainda que alheio em boa parte ao xadrez político que poria fim ao regime autoritário - basta lembrar a abstenção no colégio eleitoral de 1984 ou o voto contrário ao Texto Constitucional de 1988 -, se beneficiaria como nenhum outro agrupamento do novo tempo democrático, conseguindo contínua expansão das suas bancadas legislativas e pelo menos três mandatos presidenciais sucessivos, diante de uma oposição que não dá sinais consistentes de renovação e vitalidade.
Inevitável que se reatualize, na circunstância de hoje, o discurso sobre esquerda, ou esquerdas, e instituições. Ou sobre a esquerda no poder e outras figuras assumidas pela esquerda no passado, como o velho PCB. Ter-se-ia o PT afastado da virulência dos anos de origem, quando liquidava o passado do movimento operário sob o fogo cerrado da teoria do "populismo" e apregoava a ideia de um partido classista, puro e duro, que iria refundar o País longe da contaminação causada pelos partidos burgueses ou "reformistas" de um modo geral? Sua atual política de alianças - que em muitos casos abrange agrupamentos efetivamente conservadores e não raro, como no episódio do mensalão, parece confundir-se com interferência indevida na economia interna de partidos aliados e do próprio Parlamento - significaria algum tipo de retomada do aliancismo programaticamente adotado pelos comunistas do PCB a partir da crise do stalinismo, ainda antes do golpe de 1964?
São perguntas que até o momento recebem respostas empíricas, quando muito. Nenhuma elaboração intelectual coerente parece fundamentar o novo rumo, a não ser que consideremos como tal um certo apelo ultrapragmático à "governabilidade", que justificaria a cooptação de aliados com os quais seria difícil ou impossível negociar os termos de um verdadeiro alinhamento mudancista.
Nenhuma dúvida de que um grupo pode redefinir seu sistema de alianças, seus objetivos táticos ou estratégicos e até suas orientações de valor. Mas é inegável que, sem uma justificação adequada, não se entende por que motivo um político como Ulysses Guimarães teve acesso vetado ao primeiro palanque presidencial de Lula e, agora, se estabelece como que um "pacto de ferro" com o PMDB - na verdade, um pacto de baixa densidade programática. E isso justamente no momento em que esse partido, tendo visto materializar-se o seu programa fundamental a partir da redemocratização, se vê carente de ideias e de um grupo dirigente de âmbito nacional, como aquele outrora reagrupado em torno do próprio Ulysses, de Tancredo Neves e tantos outros.
Não obstante a hegemonia petista neste último período, só os ideologicamente transtornados poderiam confundi-la com a antiga questão da "transição para o socialismo". Não seria necessariamente razão para desilusão: em diferentes conjunturas, partidos de origem operária conduziram processos de expansão capitalista, encarregando-se, em troca, de trazer para a arena pública, com todos os títulos de legitimidade, os setores subalternos. Em cada caso, o que definiu o caráter inovador ou frustrado de tais experiências foi a relação com as instituições democráticas: também entre nós, essa relação será capaz de determinar, por décadas, a qualidade da nossa democracia política, bem como as possibilidades de crescente e continuada inclusão social.

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