Democracia e hegemonia petista
Nos anos 1970, Norberto Bobbio,
filósofo de fina estirpe liberal-socialista, lançou um contundente repto ao
velho Partido Comunista Italiano (PCI). Segundo Bobbio, com toda a sua
sofisticação enraizada na matriz gramsciana e no conhecimento por ela
proporcionado do problema nacional italiano, derivado de uma reunificação
tardia e "passiva", nem sequer o PCI escapava da tradição estreita da
Internacional Comunista, para a qual o objetivo central da tomada do poder
levava a privilegiar o partido revolucionário e a desconhecer as mediações
institucionais modernas, como, entre outras, o Estado Democrático.
Prevalecia, no dizer de Bobbio, uma
visão instrumental do Estado e, mais em geral, das formas do processo político,
o que requeria dos intelectuais comunistas uma explícita reelaboração dos temas
da sua tradição. O repto de Bobbio não era pouca coisa nem estava endereçado a
um partido intelectualmente tosco. Ao contrário, gente como Pietro Ingrao,
Giuseppe Vacca, Umberto Cerroni, Cesare Luporini e outros participaram
ativamente daquele debate que versava, em última instância, sobre as relações
entre marxismo e Estado ou, mais precisamente, as possibilidades de mudança
social num país que já não estava na periferia do capitalismo.
O mundo girou, e quase meio século
nos separa irreparavelmente daquelas discussões. A Itália e a Europa
assistiram, se não à demolição, pelo menos a um forte questionamento das
próprias estruturas da social-democracia, que, segundo o PCI dos anos 1970,
mereciam ser oxigenadas por novos movimentos de "socialização da
política" na direção de um equilíbrio mais avançado. O problema da época -
que parecia ser a "transição para o socialismo" em países de ponta -
desapareceria por muitos anos diante da ofensiva das forças e das ideologias de
mercado, que, essas, sim, por bem ou por mal, dariam à sua maneira uma resposta
às dificuldades de financiamento do Estado de bem-estar social erguido no
segundo pós-guerra.
Nem por isso se pode dizer que
aquelas preocupações suscitadas por Bobbio estejam definitivamente arquivadas
num baú de ossos. Ao contrário, os fortes abalos que têm varrido o mundo da
globalização neoliberal repuseram ou confirmaram a esquerda no poder, inclusive
no Brasil. Houve quem considerasse, nos últimos anos, que o "trem da
História", se ainda valer a velha imagem determinista, se tivesse reposto
em movimento a partir da América Latina. No Brasil, repito, um potente partido
de esquerda, ainda que alheio em boa parte ao xadrez político que poria fim ao
regime autoritário - basta lembrar a abstenção no colégio eleitoral de 1984 ou
o voto contrário ao Texto Constitucional de 1988 -, se beneficiaria como nenhum
outro agrupamento do novo tempo democrático, conseguindo contínua expansão das
suas bancadas legislativas e pelo menos três mandatos presidenciais sucessivos,
diante de uma oposição que não dá sinais consistentes de renovação e
vitalidade.
Inevitável que se reatualize, na
circunstância de hoje, o discurso sobre esquerda, ou esquerdas, e instituições.
Ou sobre a esquerda no poder e outras figuras assumidas pela esquerda no
passado, como o velho PCB. Ter-se-ia o PT afastado da virulência dos anos de
origem, quando liquidava o passado do movimento operário sob o fogo cerrado da
teoria do "populismo" e apregoava a ideia de um partido classista,
puro e duro, que iria refundar o País longe da contaminação causada pelos partidos
burgueses ou "reformistas" de um modo geral? Sua atual política de
alianças - que em muitos casos abrange agrupamentos efetivamente conservadores
e não raro, como no episódio do mensalão, parece confundir-se com interferência
indevida na economia interna de partidos aliados e do próprio Parlamento -
significaria algum tipo de retomada do aliancismo programaticamente adotado
pelos comunistas do PCB a partir da crise do stalinismo, ainda antes do golpe
de 1964?
São perguntas que até o momento
recebem respostas empíricas, quando muito. Nenhuma elaboração intelectual
coerente parece fundamentar o novo rumo, a não ser que consideremos como tal um
certo apelo ultrapragmático à "governabilidade", que justificaria a
cooptação de aliados com os quais seria difícil ou impossível negociar os
termos de um verdadeiro alinhamento mudancista.
Nenhuma dúvida de que um grupo pode
redefinir seu sistema de alianças, seus objetivos táticos ou estratégicos e até
suas orientações de valor. Mas é inegável que, sem uma justificação adequada,
não se entende por que motivo um político como Ulysses Guimarães teve acesso
vetado ao primeiro palanque presidencial de Lula e, agora, se estabelece como
que um "pacto de ferro" com o PMDB - na verdade, um pacto de baixa
densidade programática. E isso justamente no momento em que esse partido, tendo
visto materializar-se o seu programa fundamental a partir da redemocratização,
se vê carente de ideias e de um grupo dirigente de âmbito nacional, como aquele
outrora reagrupado em torno do próprio Ulysses, de Tancredo Neves e tantos
outros.
Não obstante a hegemonia petista
neste último período, só os ideologicamente transtornados poderiam confundi-la
com a antiga questão da "transição para o socialismo". Não seria
necessariamente razão para desilusão: em diferentes conjunturas, partidos de
origem operária conduziram processos de expansão capitalista, encarregando-se,
em troca, de trazer para a arena pública, com todos os títulos de legitimidade,
os setores subalternos. Em cada caso, o que definiu o caráter inovador ou
frustrado de tais experiências foi a relação com as instituições democráticas:
também entre nós, essa relação será capaz de determinar, por décadas, a
qualidade da nossa democracia política, bem como as possibilidades de crescente
e continuada inclusão social.
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