Democracia na América do Sul: perguntas incômodas
Por
que a destituição do presidente Fernando Lugo mereceu resposta tão contundente
dos países da região, quando agressões, se não à lei, ao menos ao espírito da
convivência democrática, foram recebidas com silêncio obsequioso por parte dos
que hoje se insurgem contra "o golpe das elites paraguaias"?
Seria
o impeachment de Lugo mais grave do que o desrespeito de Hugo Chávez aos resultados
do referendo de dezembro de 2007? Esqueceram-se de que no ano seguinte o
presidente venezuelano promoveu, por decreto, parte das mudanças rejeitadas
pela maioria do eleitorado do país naquela que Chávez considerou "una
victoria de mierda" das oposições ao seu governo?
Seria
mais grave o rito sumário que marcou a destituição de Lugo do que a aprovação
da nova Constituição da Bolívia, em novembro de 2007, num quartel militar
cercado por tropas e militantes fiéis a Evo Morales, sem a presença dos parlamentares
da oposição? Seria o ato do Congresso paraguaio mais grave do que a decisão
tomada por Rafael Correa, no início de seu mandato, permitindo à futura
Assembleia Constituinte, onde estava seguro de ter a maioria, dissolver o
Parlamento recém-eleito, onde se encontrava em minoria?
Por
que tanta presteza em condenar o Paraguai, quando há anos se assiste sem
protesto algum à sistemática deformação das instituições democráticas na
Venezuela sob o rolo compressor de Chávez, processo replicado em maior ou menor
medida na Bolívia e no Equador? O que representa maior ameaça à democracia na
região, um episódio confinado às fronteiras nacionais do mais pobre país da
América do Sul ou a vocação expansiva da "revolução bolivariana",
cujo epicentro é um país com uma das maiores reservas de petróleo do mundo e um
líder com recursos e disposição para pisotear o princípio da não intervenção
nos assuntos domésticos de outros países?
Para
justificar tão surpreendente zelo com a pureza do espírito democrático se
elaborou às pressas a teoria de que a destituição de Lugo representaria o
ensaio local de uma nova modalidade encontrada pelas elites da região para se
livrar de governos nacional-populares. A ideia de que o "neogolpismo"
é uma espécie de hidra, com várias cabeças, serve aos interesses maiores de
Chávez, Correa e Evo. Presta-se a legitimar o acosso a que submetem os seus
adversários internos, tratados como inimigos do povo e lacaios da elite, quando
não fantoches do "império" (os Estados Unidos). Nada como inflar ou
fabricar ameaças para justificar arbitrariedades. Não foi para se defender dos
supostos planos de invasão americana que Chávez armou uma milícia popular sob
seu comando direto, com a distribuição de milhares de fuzis, sem que tal
aberração merecesse sequer um reparo dos zelosos democratas de hoje?
Também
na Argentina se vê a captura do Estado por um grupo político que atribui a si
próprio um papel redentor do povo e da nação, confrontando adversários como
quem combate inimigos. Comum a todos esses líderes redentores é a utilização do
discurso maniqueísta povo versus elite, o que não os impede de ser ou pretender
ser, além de heróis do povo, chefes de uma nova elite que se vai erguendo
politicamente e enriquecendo financeiramente sob as asas de seus governos.
Há
mais do que afinidades políticas na aliança entre esses quatro líderes
políticos. Existe entre eles uma ampla zona cinzenta em que se misturam
negócios, assistência governamental e financiamento de campanha. Morales
financiou o programa "Bolívia Cambia, Evo Cumple" (e sabe-se lá o que
mais) com recursos transferidos por Chávez sobre os quais nem este nem aquele
prestam contas a ninguém. Em meio à primeira campanha de Cristina Kirchner para
a presidência, uma mala com US$ 800 mil em dinheiro vivo foi encontrada em mãos
de um empresário próximo ao governo chavista, num avião fretado em que viajavam
funcionários de alto escalão da petroleira venezuelana, PDVSA, e da estatal
argentina de energia, Enarsa. Cinco anos e três juízes depois, a Justiça argentina
ainda não esclareceu o caso.
Que
Chávez, Evo, Correia e Cristina se lancem à condenação do Paraguai não é
difícil de entender. Mais complicado é compreender a posição do Brasil.
Marcamos diferença importante ao não embarcar na canoa das sanções econômicas.
Mas patrocinamos a manobra oportunista que permitiu incorporar a Venezuela ao
Mercosul na esteira da suspensão do Paraguai.
O
Brasil perdeu uma oportunidade para marcar, sem alarde, fisionomia própria em
matéria de compromisso com a democracia na região. Bastava não aceitar o
ingresso da Venezuela nessas circunstâncias. De pouco vale ter mais da metade
do PIB da região se na hora de exercer liderança política nos apequenamos.
Presidentes
deixam sua marca na política externa em horas assim. Dilma poderia ter-se
diferenciado de seu antecessor, sempre solicito no apoio político aos
companheiros da vizinhança. Mas isso suscitaria comparações com Lula e
irritaria o PT.
A
questão não é só de política externa. Vale ler o artigo assinado pelo
secretário-geral do partido, Elói Pietá, publicado no site oficial da legenda
logo após o impeachment de Lugo. A chamada do artigo é eloquente: "Mesmo
com toda a sua força e grandeza, o Brasil também sofreu as tentações de um
golpe do Congresso Nacional contra o Presidente Lula". Sobre o "neogolpismo
das elites" o secretário-geral explica: "As elites ricas, onde hoje
não controlam o Executivo, voltaram a ter no Parlamento Nacional seu principal
ponto de sustentação institucional. Além disso, através da poderosa mídia
privada, seu principal guia ideológico e voz junto ao povo, elas continuamente
instigam a opinião pública contra os governos populares".
A
decisão brasileira de punir o Paraguai para premiar a Venezuela é tributária
dessa visão de mundo. Uma é inseparável da outra.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,democracia-na-america-do-sul-perguntas-incomodas-,897091,0.htm
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