Pobreza recua no Brasil, mas fim da miséria é
questionável
Segundo
especialistas, erradicar pobreza extrema e tornar o Brasil um país de classe
média será mais complexo do que indica o governo
Apesar de
expressivos avanços no combate à extrema pobreza, erradicar a miséria do Brasil
e transformá-lo num país de classe média será mais complexo e demorado do que o
discurso do governo sugere, segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
Há duas semanas, à
frente de uma placa com o slogan "O fim da miséria é só um começo" –
provável lema de sua campanha à reeleição –, a presidente Dilma Rousseff
anunciou a ampliação das transferências de renda às famílias mais pobres que
constam do Cadastro Único do governo.
Com a mudança, os
mais pobres receberão repasse complementar para que a renda per capita de suas
famílias alcance ao menos R$ 70 ao mês – patamar abaixo do qual são consideradas
extremamente pobres pelo governo. A alteração, diz o governo, permitirá que 2,5
milhões de brasileiros se somem a 22 milhões de beneficiários do Bolsa Família
que ultrapassaram a linha da pobreza extrema nos últimos dois anos.
Para que o programa
seja de fato universalizado, porém, o governo estima que falte registrar 2,2
milhões de brasileiros miseráveis ainda à margem das políticas de transferência
de renda, o que pretende realizar até 2014. Especialistas em políticas
antipobreza ouvidos pela BBC Brasil aprovaram a expansão do programa, mas fazem
ressalvas quanto à promessa do governo de erradicar a miséria.
Para Otaviano
Canuto, vice-presidente da Rede de Redução da Pobreza e Gerenciamento Econômico
do Banco Mundial, o Bolsa Família – carro-chefe dos programas de transferência
de renda do governo – é bastante eficiente e tem um custo relativamente baixo
(0,5% do PIB nacional).
Canuto diz que o
plano e outros programas de transferência de renda ajudam a explicar a melhora
nos índices de pobreza e desigualdade no Brasil na última década, ainda que,
somados, tenham tido peso menor do que a universalização da educação –
"processo que vem de antes do governo Lula" – e a evolução do mercado
de trabalho, com baixo desemprego e salários reais crescentes.
Apesar do progresso,
estudiosos dizem que, mesmo que o Cadastro Único passe a cobrir todos os
brasileiros que hoje vivem na pobreza, sempre haverá novas famílias que se
tornarão miseráveis.
Há, ainda,
questionamentos sobre o critério do governo para definir a pobreza extrema –
renda familiar per capita inferior a R$ 70, baseado em conceito do Banco
Mundial que define como miserável quem vive com menos de US$ 1,25 por dia.
Adotado em junho de
2011 pelo governo, quando foi lançado o plano Brasil Sem Miséria (guarda-chuva
das políticas federais voltadas aos mais pobres), o valor jamais foi
reajustado. Se tivesse acompanhado a inflação, hoje valeria R$ 76,58.
Em onze das 18
capitais monitoradas pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos), R$ 70 não garantem sequer a compra da parte de uma
cesta básica destinada a uma pessoa. Em São Paulo, seriam necessários R$ 95,41
para a aquisição.
Em 2009, o então
economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas,
Marcelo Neri, defendeu em artigo que a linha de miséria no país fosse de R$ 144
por pessoa. Essa linha, segundo o autor, que hoje preside o IPEA (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, órgão ligado à Presidência), atende necessidades
alimentares mínimas fixadas pela Organização Mundial da Saúde.
O economista
Francisco Ferreira, também do Banco Mundial, considera positivo que o Brasil
tenha definido uma linha de pobreza, mas afirma que o valor deveria ser
ajustado ao menos de acordo com a inflação e que está "muito baixo"
para o país.
Segundo Ferreira, o
Banco Mundial estabeleceu a linha de miséria em US$ 1,25 ao dia para
uniformizar seus estudos, mas cada país deveria definir próprios critérios.
"Não me parece adequado que o Brasil adote a mesma linha aplicável a um
país como o Haiti, por exemplo."
Tiago Falcão,
secretário de Superação da Pobreza Extrema do Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS), reconhece que mesmo que o Bolsa Família chegue a
todos os brasileiros pobres sempre haverá novas famílias que cairão abaixo da
linha da miséria.
"Buscamos a
superação da miséria do ponto de vista estrutural, para que não existam
brasileiros que não sejam atendidos por nenhuma política pública. E estamos
tentando encurtar o prazo de resgate dos extremamente pobres."
Falcão diz que a
linha de R$ 70 responde a compromisso internacional do governo assumido com as
Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM), que previam a redução à metade da
pobreza extrema no país até 2015. Tendo como referência a linha do Banco
Mundial, diz Falcão, o governo se "propôs um desafio muito mais complexo,
que é a superação da extrema pobreza".
"Era uma meta
ambiciosa para o Brasil e, por outro lado, factível. Hoje consideramos que
acertamos ao definir a linha de R$ 70". O secretário diz, no entanto, que
se trata de um piso de "carências básicas" que, uma vez definido,
poderá ser aumentado levando em conta as disparidades regionais e o quão
solidária a sociedade quer ser com os mais pobres.
Para Alexandre
Barbosa, professor de história econômica do Instituto de Estudos Brasileiros da
USP, o governo deveria levar em conta outros critérios além da renda em sua
definição de miséria. Em 2011, Barbosa coordenou um estudo do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento) intitulado "O Brasil Real: a
desigualdade para além dos indicadores".
O estudo, que contou
com apoio da ONG britânica Christian Aid, afirma que as políticas de
transferência de renda melhoraram a vida dos mais pobres, mas não alteraram a
estrutura social brasileira. Barbosa é especialmente crítico à ideia de que,
com a redução na pobreza, o Brasil está se tornando um país de classe média,
tese defendida pela presidente.
"Considerar
classe média alguém que recebe entre um e dois salários mínimos, que mora em
zona urbana sem acesso a bens culturais nem moradia decente, que leva três
horas para se deslocar ao trabalho? Essa é a classe trabalhadora que está sendo
redefinida."
Para o professor, a
transferência de renda deveria integrar um conjunto mais amplo de ações do
governo com foco na redução da desigualdade. Entre as políticas que defende
estão reduzir os impostos indiretos sobre os mais pobres, fortalecer
cooperativas e agregar valor à produção industrial, para que os salários
acompanhem os ganhos em eficiência.
Falcão, do MDS, diz
que o governo já tem atacado a pobreza por vários ângulos. Segundo ele, o
Cadastro Único – "uma inovação em termos de política social ainda pouco
compreendida no Brasil" – revolucionou a formulação de políticas públicas
para os mais pobres.
O cadastro hoje
inclui 23 milhões de famílias (ou cerca de 100 milhões de pessoas, quase metade
da população) e é atualizado a cada dois anos com informações sobre sua
situação socioeconômica. Segundo o secretário, o cadastro tem orientado
programas federais de expansão do ensino integral, fortalecimento da
agricultura familiar e qualificação profissional, que passaram a atender
prioritariamente beneficiários do Bolsa Família.
Para Canuto,
vice-presidente do Banco Mundial, manter o Brasil numa trajetória de melhoria
dos indicadores sociais não dependerá apenas de políticas voltadas aos mais
pobres. Ele diz que o "modelo ultra exitoso" que permitiu a redução
da pobreza na última década, baseado no aumento do consumo doméstico e da massa
salarial, está próximo do limite.
De agora em diante,
afirma Canuto, os avanços terão que se amparar em maiores níveis de
investimentos, que reduzam o custo de produzir no Brasil. "É preciso
pensar no que é necessário para que, daqui a uma geração, os benefícios de
transferência condicionada de renda não sejam mais necessários. Para isso, o
foco tem que ser em boa educação, acesso à saúde, emprego de qualidade,
melhoria da infraestrutura e espaço para o desenvolvimento do talento
empresarial."
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-03-11/pobreza-recua-no-brasil-mas-fim-da-miseria-e-questionavel.html
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