A crueldade por trás de
crimes que assustam o país
A barbárie empregada por bandidos contra vítimas indefesas tem
chocado até policiais experientes. E as leis precisam ser aplicadas de forma
mais firme
O ato bárbaro contra a dentista Cinthya Magaly Moutinho ficou
marcado no seu consultório.
Nos últimos 30 anos, a taxa de homicídios no Brasil cresceu
124%. Nesse período, mais de um milhão de pessoas foram assassinadas, de acordo
com dados do Mapa da Violência, do Instituto Sangari. São crimes que ocorrem
todos os dias, das mais variadas formas, e que atingem 26 pessoas a cada
100.000 habitantes atualmente. Porém, até para um país com dimensões
continentais e acostumado a taxas alarmantes de criminalidade, alguns casos têm
efeito estarrecedor. Em comum, essas histórias têm um mesmo componente: a
crueldade.
Foi o que ocorreu na semana passada com a dentista Cinthya
Magaly Moutinho de Souza, de 47 anos, cuja morte assustou a sociedade pela
barbárie. Assaltada em sua clínica, em São Bernardo do Campo, na Grande São
Paulo, ela foi queimada viva por
criminosos que invadiram o local. Segundo relato de uma testemunha, a dentista
implorou insistentemente - em vão - para que os monstros não ateassem fogo
contra o seu corpo, encharcado de álcool. O motivo da crueldade: ela só tinha
30 reais em sua conta bancária – dinheiro que
frustrou os assaltantes. Mas o que leva um assaltante a atear fogo em uma
vítima indefesa?
“A sociedade fica angustiada diante de crimes assim, exige uma
resposta, que entender, mas não há uma resposta simples. É difícil encarar que
exige gente boa e má”, diz o psiquiatra Daniel Martins de Barros, do Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. “Muitos desses criminosos que não
parecem dar valor à
vida alheia também não valorizam a própria vida. A criminalidade criou uma
cultura ética que não valoriza a vida em si. Para eles, não é um bem valioso”,
afirma Martins.
O britânico Simon Baron-Cohen, professor de Psicopatologia do
Desenvolvimento da Universidade de Cambridge e autor de um livro sobre
crueldade (The Science of Evil: On Empathy and The Origins of Cruelty), prefere
substituir a palavra “mal” por “erosão da empatia”: a falta de compreensão dos
sinais emocionais de outra pessoa ou a incapacidade colocar-se no lugar do
outro. Por esse método, os criminosos que queimaram a dentista não a enxergaram
como um ser humano, mas como algo que poderia lhes fornecer dinheiro.
No mês passado, três homens estupraram em série uma turista americana durante
seis horas dentro de uma van no Rio de Janeiro. Os depoimentos da vítima e de
um menor que acompanhava o grupo descrevem que os acusados riram, debocharam e
ofenderam a vítima enquanto ela era abusada. Até mesmo os investigadores
ficaram assombrados. Os criminosos ignoraram o apelo de vítimas indefesas e
transformaram o que parecia ser um assalto comum – embora essa situação por si
só seja grave – em um crime de sadismo com proporções aterradoras. "Em
grupo, o comportamento é diferente, a pessoa tende a ser menos ela mesmo e
passa a agir por outra lógica. E normalmente esse ato é resultado de uma
escalada de violência", diz Daniel Martins, do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas.
O especialista em segurança pública Guracy Mingardi, ligado ao
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que esse caraterística da
crueldade surge como uma consequência da banalização do crime em geral.
“Nenhuma sociedade da História conseguiu atingir um padrão zero de
criminalidade. Não existe um controle específico para casos assim, o combate é
sempre o mesmo, seja roubo ou estupro. O problema é que, com a sensação de
impunidade, de que não vão ser pegos, os criminosos se sentem mais à vontade
para cometer ainda mais crimes na sua área. Nisso, alguns se sentem à vontade
para cometer barbaridades”, afirma Guracy Mingardi.
Como na série de gravuras do século XVIII “Os quatro estágios da
crueldade”, do pintor inglês William Hogarth, os criminosos envolvidos nesses
casos parecem, de acordo com o resultado das investigações, terem galgado uma
escalada de brutalidade até cometerem um ato extremo. Em suas gravuras, Hogarth
apresentava um personagem ficcional, chamado Tom Nero, que começava torturando
animais, entre eles um gato e um cachorro, até finalmente matar uma pessoa. A
última gravura, de tom moralista, mostra que o castigo viria: Nero é enforcado
e depois dissecado por um grupo de cientistas e cirurgiões interessados em estudá-lo.
Durante as investigações em São Bernardo do Campo, os policiais
descobriram que ameaças de atear fogo nas vítimas já foram relatadas em
assaltos anteriores do bando. A exemplo do grupo que agia na região
metropolitana de São Paulo, o trio de estupradores do Rio é suspeito de ter
estuprado pelo menos outras quatro mulheres antes da turista americana.
Embora a característica dos crimes cometidos nas últimas semanas
passe a impressão de que os criminosos estão mais cruéis do que nunca, o Brasil
já vivenciou outras ondas semelhantes. Em 2007, um ônibus foi incendiado com 28
passageiros – oito morreram – no Rio. Em seguida, o menino João Hélio, de seis
anos, foi morto ao ser arrastado por quilômetros, preso pelo cinto de segurança
do carro de sua mãe que acabara de ser roubado - ela não conseguiu retirar a
criança do veículo, mas os bandidos arrancaram.
Leis - As leis brasileiras preveem sanções para situações
de crueldade. Foi o caso da manicure Suzana do Carmo de Oliveira Figueiredo, de
anos 22, acusada de sequestrar e depois asfixiar um
menino de seis anos em Barra do Piraí, no Rio de Janeiro. O crime ocorreu em
março. Ao longo das investigações, a polícia apontou diferentes razões para o
crime, como vingança – contra o pai ou a mãe da criança – ou até mesmo a
intenção de pedir resgate pela criança.
Pelo crime, Suzana Figueiredo foi indiciada por homicídio doloso
(com intenção de matar) triplamente qualificado. Nos qualificadores, apareceram
o motivo torpe, o emprego de meio cruel e a impossibilidade da defesa da
vítima. A Justiça aceitou a tipificação dos crimes. Para qualificar o motivo
torpe, a Justiça entendeu que ela foi movida por ódio e vingança. "Torpe é
aquele motivo abjeto, repugnante e aversão na sociedade", diz o professor
de direito penal da Univerisidade de São Paulo Alamiro Velludo Salvador Netto.
A Justiça lista alguns exemplos além de ódio e vingança, entre eles os casos de
maridos que matam suas esposas porque elas negaram a reconciliação.
Já o meio cruel é definido pelo emprego de métodos que aumentem
o sofrimento da vítima ou revelem brutalidade fora do comum. Nesse grupo,
enquadram-se asfixia, tortura e o emprego de fogo – como no caso da dentista.
Por causa desse artigo, a pena para um crime de homicídio,pode ser
substancialmente aumentada. Uma pena prevista de seis a vinte anos pode subir
para doze a 30 anos em casos assim. Apesar de ser considerada adequada por
criminalistas ouvidos pelo site de VEJA, as penas, parecem não intimidar os
criminosos.
No caso do grupo que queimou e matou a dentista Cinthya, o crime
foi tipificado como latrocínio (roubo seguido de morte), que prevê de 20 a 30
anos de prisão e é considerado hediondo – a progressão, que permite que o preso
deixe a prisão antes do fim da pena, é mais rígida para os condenados por esse
crime. Essa modalidade não engloba as qualificadoras, já que sua pena é
considerada alta e o crime suficientemente grave, mas o juiz pode levar em
conta o meio com que a vítima foi morta e seu sofrimento no momento da fixação
da pena.
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