O
descompasso entre a prática e a teoria: ideias liberais mal copiadas no Brasil
entre o Império e a República
Os conservadores não queriam deixar de ser uma sociedade
escravocrata.
No Brasil, entre os séculos XVIII e XIX, os filhos da oligarquia
agrária enviados à Europa para estudar, voltavam trazendo nas malas toda uma
formação orientada pelas principais correntes ideológicas que circulavam no
continente europeu naquele período.
Iniciava-se, dessa forma, um processo de
“importação“ ideológica que futuramente esbarraria num contexto nacional
completamente avesso ao cenário da Europa, caracterizando um verdadeiro
artificialismo ideológico de um Estado que pensava de um jeito, mas agia de
outro.
Do Império aos anos que antecederam a República, tentou-se copiar as
ideologias dos contextos europeu e americano na tentativa de construção de um
Estado com poder descentralizado com bases impessoais e racionais, com funções
dadas dentro de uma burocracia técnica.
No entanto, tais
tentativas malograram, uma vez que a organização social brasileira condicionava
a uma vida política pautada pela sobreposição entre as ordens pública (que diz
respeito aos interesses coletivos, de toda a sociedade) e privada
(particularistas, de interesse individual apenas).
Em outras palavras, a causa
do artificialismo dos ideais liberais e o malogro desta “importação de ideais”
poderia ser encontrada na relação de promiscuidade ou de intercruzamento entre
o público e o privado, uma vez que as políticas racionais de cunho positivista
e liberal que o Estado defendia no âmbito do pensamento tinham de se moldar à
sociedade patriarcal, escravocrata e patrimonialista.
Se o liberalismo era
sinônimo de liberdade e de descentralização política (a qual era interessante
uma vez que a autonomia da elite poderia ser de maior valor do que a submissão
ao poder da figura imperial), por outro ia na contra mão da realidade
conservadora do Brasil. Prevaleciam as ideias tradicionais e elitistas de
manutenção do território (e do poder que dele provinha), da territorialidade e
do sistema econômico de produção assentado sobre a escravidão.
A maneira como se deu a
Independência do país sem a eclosão de uma revolução (como as que ocorreram em
outros países da América Latina) deixa claro que embora tenha sido motivada por
um espírito “liberal-moderno”, foi promovida pela manutenção de sistemas e
atividades da colônia, por atividades ainda em muito ligadas ao contexto da
ordem privatista rural, cenário este que configurou o artificialismo
ideológico.
Este foi, certamente, o ponto alto do descompasso das práticas
políticas nacionais com os ideais liberais positivistas da época. Assim ocorreu
tanto no ensaio para a constituição do Império como para o advento da
República.
Como mostra Luiz Werneck Vianna (1996), o idealismo nacionalista
revolucionário que motivou a ruptura com a Metrópole portuguesa e, mais tarde,
o próprio advento da República, cedeu lugar para a lógica do “conservar
mudando”.
A tentativa de se construir um Estado fundado na preservação de
fatores como o trabalho escravo e o territorialismo (manutenção do grande
latifúndio e do status da propriedade privada), permitiu que ele (o Estado)
ficasse marcado por uma grande ambiguidade dada por seus anseios à modernidade
e seu apego à tradição.
“A radical ambiguidade do Estado – entre liberalismo e a
escravidão – devia se resolver nele mesmo, instituição tensa, arquiteto de uma
obra a reclamar a cumplicidade do tempo, delegando-se ao futuro a tarefa de
vencer a barbárie de uma sociedade fragmentária e invertebrada, até que ela
viesse a corresponder e atender às exigências dos ideais civilizatórios dos
quais ele seria o único portador”(VIANNA, 1996, p.378).
Esse contexto de transformação parcial da esfera política ou da
utilização do liberalismo como um “conta-gotas”, nas palavras de Werneck
(1996), é também referido por Wanderley G. dos Santos.
Ao discorrer sobre a
evolução do liberalismo no Brasil em um dos trabalhos, ele mostra a ótica
sobre a maneira como se deu a formação deste contexto político nacional com
ares de liberal e democrático, mas impregnado de questões obscuras que
denunciavam uma “não conversão integral” ao liberalismo e às práticas
positivistas apregoadas, na teoria, pelo Estado e pela Constituição.
“Assim, para que o Estado
liberal operasse a contento, tal como descrito na Constituição, seria
suficiente varrer os políticos corruptos do sistema. Essa ideia constituiria a
espinha dorsal da agenda dos políticos liberais até 1930: eleições honestas,
afastamento dos políticos corruptos, liberdade para o mercado político poder
operar como devia. Não deveria surpreender a ninguém, entretanto, encontrar
muitos dos que aderiram a esse tipo de liberalismo pedindo ao Estado que
sustentasse os preços do café, ou ao Governo que apoiasse a economia
açucareira” (SANTOS, 1998, p.34).
Logo, nada mais indicador que estas questões obscuras (presentes
na prática política) para denunciar o artificialismo ideológico existente, que
mais tarde contribuiria ao vilipêndio do espaço político brasileiro de maneira
geral.
Assim, se a tentativa da efetivação de práticas políticas envoltas pelos
ideais europeus em voga poderia ser lida como uma ação voltada à esfera
pública, e se por outro lado, a forma com qual a classe política tentou pautar
suas ações na defesa de seus interesses denuncia a tentativa de perpetuação da
esfera privada no poder, o que se pode inferir é que a organização política
nacional foi construída sobre esta sobreposição entre tais esferas.
Dessa forma,
será esta sobreposição ou simbiose entre a coisa pública e a privada o ponto
fundamental para se pensar como também foi edificado o campo da política no
Brasil, o qual, como se sabe, possui muitas fragilidades.
http://www.brasilescola.com/sociologia/o-descompasso-entre-pratica-teoria-ideias-liberais.htm
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