Mulheres são humilhadas e têm cabeças
raspadas por traficantes no Rio e na Bahia
Mulheres têm
cabeças raspadas por traficantes da Ladeira dos Tabajaras, no Rio
O interrogatório
acontece na cozinha de uma casa na Ladeira dos Tabajaras, na zona sul do Rio de
Janeiro. O chão está tomado por cabelos de três mulheres cortados à força. De
cabeças raspadas, elas são questionadas a tapas e chineladas por traficantes do
Comando Vermelho.
Em áreas
dominadas pelo crime organizado, criminosos estabelecem as leis e as
respectivas penas para quem as infringe. No caso de mulheres, namorar pessoas
de comunidades rivais, passar informações sobre atividades dos traficantes à
polícia, dever para a "boca de fumo" e até brigar em bailes são
alguns dos "motivos" passíveis deste tipo de tortura.
O UOL teve
acesso a dois vídeos recentes em que mulheres têm cabeças e sobrancelhas
raspadas contra a vontade delas e que revelam que essa prática é realizada em
favelas no Rio e na Bahia.
O
Disque-Denúncia fluminense registrou 27 denúncias de mulheres torturadas por
traficantes desde o ano de 2013 até o presente momento. Conforme relatos
anônimos que chegam ao serviço, as adolescentes são as maiores vítimas da ação
dos criminosos, que impõem suas regras em diversas comunidades do Estado.
Esse é o caso de
uma das três mulheres que foram interrogadas, no dia 5 de novembro, por traficantes
da Ladeira dos Tabajaras, uma favela incrustada entre os bairros cariocas de
Copacabana e Botafogo. Dominado pelo Comando Vermelho, o lugar possui uma UPP
(Unidade de Polícia Pacificadora) desde 2010.
Segundo o
delegado Deoclécio Francisco de Assis Filho, policiais militares da UPP
Tabajaras estavam atrás de criminosos da região quando fizeram uma batida em
uma casa e encontraram as três mulheres e um grupo de traficantes.
Eles teriam
se escondido na casa e obrigado uma delas a dizer que era mulher de um deles.
Todos foram levados pela PM para a delegacia e as três prestaram depoimento. Ao
voltar para a favela, elas foram acusadas pelos traficantes de serem
"X-9" (dedo-duro) e foram torturadas.
Assis Filho está
à frente da DPCA (Delegacia da Criança e Adolescente) e diz que foi aberto um
inquérito, mas ele continua parado na delegacia porque as mulheres nunca
voltaram para prestar depoimento e reconhecer os agressores. "O caso não
foi adiante. Dependia de elas voltarem à delegacia para prestar depoimento",
disse o delegado.
"Elas têm
sorte de estarem vivas", diz delegado que abriu inquérito no Rio.
A mãe de uma das
vítimas teria avisado ao delegado que a Defensoria Pública orientou para que
elas não voltassem para prestar depoimento. A informação não foi confirmada
pelo órgão. "Traficantes matam, mutilam, humilham. Elas têm sorte de
estarem vivas", acrescentou o delegado.
"Só para
reforçar: elas não são as únicas vítimas. Só tiveram a 'sorte' de ter o caso
divulgado. Eles batem e raspam o cabelo das meninas que brigam no baile",
diz um morador da Ladeira dos Tabajaras, sob a condição de anonimato. "Tem
coisa que só que quem é da comunidade é quem sabe."
A Polícia Civil
do Rio informou, por meio de sua assessoria, que as vítimas foram convocadas novamente
para depor e identificar fotos dos suspeitos. No vídeo, é possível observar que
são citados dois nomes de traficantes que atuam naquela localidade, sendo que
um deles, após a realização de um trabalho de inteligência por policiais civis
da 12ª DP, já foi identificado, afirma a nota.
O UOL apurou que
a Defensoria Pública tentou colocá-las no programa de proteção à testemunha,
mas elas não quiseram se afastar da família.
Regras do tráfico
Na cidade de
Feira de Santana (BA), uma mulher grávida teve seus cabelos cortados por
tesoura e as sobrancelhas raspadas por gilete por traficantes da Catiara, uma
das quatro maiores facções criminosas da Bahia. Seu "crime" foi ter
um relacionamento com um traficante de uma facção rival.
Por várias
vezes, vê-se no vídeo que a mulher é obrigada a falar os gritos de guerra da
facção, enquanto tem cabelos cortados no meio da rua de um bairro periférico da
cidade --distante 92 km de Salvador e a mais populosa do interior baiano, com
623 mil habitantes, de acordo com estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística). O caso aconteceu no bairro de Queimadinha, no começo
de outubro.
"Elas ainda
ficam ainda mais vulneráveis nesses espaços em que o crime organizado domina,
devido à omissão do Estado", afirma a promotora de Justiça Lívia Santanna
Vaz, coordenadora do Gedem-MPBA (Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher
do Ministério Público baiano).
Traficantes da
facção Catiara cortam cabelos de mulher em Feira de Santana (BA).
A promotora vai
enviar um ofício para a SSP-BA (Secretaria da Segurança Pública da Bahia) para
obter informações oficiais sobre o caso. Procurada, a SSP-BA informou, com base
em análises da Superintendência de Inteligência, que a vítima não quis prestar
depoimento à delegacia sobre a agressão sofrida. Uma investigação foi aberta
para identificar os traficantes.
Outro caso
semelhante foi registrado em Salvador no bairro da Liberdade, em junho deste
ano.
"Chegou a
nosso conhecimento relatos de que mulheres que sofrem violência doméstica e
moram em comunidades dominadas evitam acionar as autoridades, pois os
traficantes proíbem a presença da polícia no local", informa a promotora.
"Outras que chegam a denunciar o agressor e recebem proteção policial têm
que se mudar para outras comunidades, por causa das ameaças dos
traficantes."
Um investigador
da Polícia Civil baiana, com mais de 30 anos de experiência, afirma que é comum
que os próprios traficantes "resolvam" problemas de violência
doméstica nas comunidades dominadas pelo crime organizado. "Eles mesmos
dão o 'corretivo' no sujeito para que a polícia não entre no local."
Machismo
A socióloga
Marta Tavares relembra que a prática dos traficantes remete à humilhação
sofrida por milhares de francesas após a ocupação nazista no país durante a
Segunda Guerra Mundial. Acusadas de colaborar com inimigo ou terem
relacionamentos sexuais com oficiais nazistas, elas tiveram suas cabeças
raspadas e suas roupas retiradas em praça pública.
"A mulher é
vista como um objeto. É destituída a condição da mulher do sujeito. A própria
sociedade, dentro da ordem patriarcal, coloca essas mulheres como propriedade
do homem. Esses traficantes têm poder de vida e morte sobre essas
mulheres", afirma Tavares, coordenadora do NEIM-UFBA (Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre Mulher da Universidade Federal da Bahia).
"Essa
agressão é a forma de coisificar, humilhar e destituir da mulher aquela imagem
que constrói a imagem de feminilidade. Para os traficantes, raspar a cabeça
dessas mulheres é uma forma de retirar as identidades delas."
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