O Exército de Cavalaria (Red Cavalry/Konármia), de Isaac
Bábel
por Christian von Koenig em 26/08/2011
“O horror então é
duplo: sentimos que a descrição nos choca, porém ignoramos o choque para seguir
adiante. Assim, tornamo-nos também soldados; somos agora mais do que leitores,
somos personagens da história.”
Não poderia falar sobre
este livro sem antes recorrer à citação de Maiakovski, quando escreve: “Sem
forma revolucionária não há arte revolucionária.” Bábel, posto que partidário
do Comunismo e escritor engajado, fez levou a máxima à maestria.
Nascido em 1984, em
Odessa, Ucrânia, e originário de uma família judaica, Isaac Bábel teve de lidar
desde cedo com as perseguições aos sectários de sua fé, por meio de pogroms, e
com o dilema estabelecido entra a ideologia e a crença, como conferimos nesta
passagem do conto O filho do Rabino:
“Tudo estava amontoado
ali, as credenciais de agitador e as anotações de um poeta judeu. Retratos de
Lênin e de Maimônides jaziam lado a lado. O ferro nodoso do crânio de Lênin e a
seda opaca dos retratos de Maimônides. Uma mecha de cabelos femininos servia de
marcador num livro com as deliberações do Sexto Congresso do Partido, e nas
margens das páginas comunistas apertavam-se as linhas tortuosas de antigos
versos hebraicos. Qual chuva rala e triste, caíam sobre mim páginas do Cântico
dos Cânticos e cartuchos de revólver.” – Na tradução de Aurora Fornoni
Bernardini e Homero Freitas de Andrade para a Cosac Naify.
Judeu e comunista,
via-se dividido, pois se para os judeus o Comunismo era uma ameaça, para os
comunistas o Judaísmo, bem como as demais religiões, era uma instituição
ultrapassada, portanto desnecessária e até malévola. Vale aqui ressaltar que o
Império Russo teve a maior população judaica da Diáspora e que o Comunismo
pregava tanto o ateísmo quanto o internacionalismo.
Essa e outras
ambiguidades de caráter estão impressas ao longo dos 36 contos que compõem O
Exército de Cavalaria. São textos narrados por muitas vozes, com predominância
de certo Kirill Vassílievitch Liútov, alterego do autor, e com uma fascinante
reincidência de personagens, tal o filho do Rabino e Sachka. Escritos entre as
décadas de 20 e 30 do século passado, todos eles giram em torno da Guerra
Polaco-Soviética (1919-1921), da qual o próprio Bábel participou.
O conflito antepunha a
Polônia e a República da Ucrânia contra a Rússia e Ucrânia Soviéticas,
primeiramente como uma disputa por território iniciada pelos poloneses, para
então ganhar uma conotação política nas mãos de Lênin e Trotsky, pois com a
derrota da Polônia os soviéticos teriam o caminho livre para espalhar a
“Revolução permanente” pela Europa. Essa guerra, no entanto, teve como
vitoriosos os poloneses, com o sucesso em batalhas históricas como a de
Varsóvia.
Bábel, mirrado e míope,
além de judeu, foi destacado para a divisão de cavalaria do Exército Vermelho.
Enquanto lutava pela Revolução Comunista, outra, mais íntima, ocorria em seus
cadernos de anotações, infelizmente hoje perdidos. Neles surgia uma literatura
a par com os novos tempos. O Exército de Cavalaria surpreende em várias
esferas: é o retrato das contradições de um pensador, é o terror e a frieza de
um soldado, é a impressão de um homem do século XX e é a tentativa de
conciliação de todos esses lados por parte do escritor.
Estes contos são a
consciência da Modernidade, são as vísceras da guerra. Neles não há espaço para
julgamentos, o próprio cenário e a rápida sucessão de acontecimentos não
permitem a reflexão do acontecido. O horror então é duplo: sentimos que a
descrição nos choca, porém ignoramos o choque para seguir adiante. Assim,
tornamo-nos também soldados; somos agora mais do que leitores, somos
personagens da história.
E o autor não nos poupa
dos detalhes sórdidos, chega a agir mesmo com indiferença diante das
atrocidades do campo de batalha, segundo o velho lema de escolher a demência
para não perder a sanidade. Disso resultou homens com os órgãos expostos ainda
vivos, inocentes fuzilados sem porquê, cavalos ensanguentados a marchar,
cidadãos famintos e maltratados, tudo descrito sem o menor apelo sentimental,
como se a insensibilidade integrara um hábito, conforme lemos neste diálogo em
Zámostie:
“Ficamos reduzidos a um
cavalo. A montaria mal deu conta de nos tirar de Sitanietz. Eu ia na sela;
Vólkov, na garupa.
Os comboios corriam,
rangiam e atolavam na lama. A manhã evaporava-se de nós como o clorofórmio da
mesa do hospital.
- Você é casado,
Liútov? – perguntou Vólkov à queima-roupa, montado na garupa.
- Minha mulher me
abandonou – respondi; cochilando por alguns instantes, sonhei que estava
dormindo numa cama.
Silêncio.
Nosso cavalo
cambaleava.
- Esta égua não vai
aguentar mais de duas verstas – diz Vólkov, montado na garupa.
Silêncio.
- Perdemos a campanha –
resmunga Vólkov, e começa a roncar.
- É – digo eu.”
Até porque Bábel não
teve a mínima intenção de fazer uma literatura sentimental, abstrata. Ao
contrário, seus escritos são imagéticos, reais, concretos. Daí nascem
expressões tais: “um sol alaranjado rola pelo céu como uma cabeça decepada” e
“o cheiro de sangue e dos cavalos mortos pinga no frescor da tarde” (do conto A
travessia de Zbrutch); ou “uma lua desamparada vagava pela cidade” (Pan
Apolek), “sentado à parte, eu tirava uma pestana, os sonhos pulavam ao meu
redor feito gatos” (O sol da Itália) e “inchadas de tinta, as nuvens apagavam
as estrelas” (Zámstie).
Apenas não o tomemos
por um partidário acrítico do Comunismo. Sua visão da Revolução sempre foi
bastante lúcida, ao contrário dos discursos inflamados de seus líderes,
exageros estes ironizados em diversos momentos das narrativas. Chegou mesmo a
ser considerado contrarrevolucionário por não compartilhar de uma opinião tão
otimista a respeito do movimento. Preso e condenado, sua morte ainda é um
mistério. Teria sido executado entre 1940 e 1941, mas não se sabe exatamente
quando.
Em Guedáli, um dos
contos emblemáticos desta reunião, ao lado de Uma carta e O sal, encontramos o
seguinte questionamento do personagem-título, para o qual Bábel nos parece
também não ter descoberto a resposta:
“- Mas o polonês estava
atirando, meu caro pan, porque ele era a contrarrevolução. E vocês atiram
porque são a Revolução. Mas a Revolução é alegria. E a alegria não gosta de ter
órfãos pela casa. O homem bom faz boas obras. A Revolução é uma boa obra de
homens bons. Mas homens bons não matam. Então, quer dizer que quem faz a
Revolução são os homens maus. Mas os poloneses também são homens maus. Quem
dirá a Guedáli de que lado está a Revolução e de que lado está a
contrarrevolução?”
Terminemos com o trecho
mais conhecido – e provavelmente mais importante – de O Exército de Cavalaria.
O sal sintetiza toda a cegueira humana, toda a descrença e todo o desespero de
um homem que luta por um ideal do qual não se convence por completo e que por
ele pode morrer a qualquer instante, enquanto vê sua terra e seu povo
definharem:
“Confesso que realmente
atirei a tal cidadã para fora do trem em movimento, num declive, mas ela, de
tão ordinária, ficou um tempo ali sentada, sacudiu as saias e seguiu seu
caminho de sordidez. E, ao ver aquela mulher intacta e a indescritível Rússia
que a rodeava, e os campos dos camponeses sem uma só espiga, e as moças
ultrajadas, os muitos camaradas que vão para o front e os poucos que voltam, me
deu vontade de pular do vagão para dar um fim na minha vida, ou na dela. Mas os
cossacos ficaram com pena de mim e disseram:
- Passa fogo nela.
E, apanhando minha fiel
arma na parede, varri aquela vergonha da face da terra trabalhadora e da
República.”
Sugestão:
O Exército de
Cavalaria, Editora Casac Naify, 2006, Tradução e apresentação de Aurora Fornoni
Bernardini e Homero Freitas de Andrade, Posfácios de Boris Schnaiderman e Otto
Maria Carpeaux, 256 pp. Aliás, a coleção Prosa do Mundo, pela qual este livro
foi publicado, conta ainda com outras maravilhas pouco conhecidas no Brasil,
como Jacobsen, Breton e outros.
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