A
morte feliz, de Albert Camus
...
A manhã que despontou estava cheia de pássaros e de ar fresco. O sol subiu
rapidamente e de um salto ficou acima do horizonte. A terra cobriu-se de ouro e
de calor. Na manhã, o céu e o mar se salpicavam de luzes azuis e amarelas, com
grandes manchas que saltavam. Um vento leve erguera-se, e pelas janelas um ar
com gosto de sal vinha refrescar as mãos de Mersault. Ao meio-dia o vento
cessou, o dia explodiu como um fruto maduro e sobre toda a extensão do mundo
escorreu como um suco morno e sufocante, ao som de um repentino concerto de
cigarras. O mar cobriu-se deste suco dourado como um óleo e devolveu à terra
esmagada pelo sol um sopro quente, que a impregnou, exalando cheiros de
absinto, de alecrim e de pedra quente. Da cama, Mersault captou esse choque e
essa oferenda e abriu os olhos sobre o mar imenso e curvo, reluzente, povoado
de sorrisos de seus deuses. Deu-se conta, de repente, de que estava sentado na
cama e que o rosto de Lucienne estava bem perto do seu. Lentamente subia dentro
dele, como que desde o ventre, uma pedra que se encaminhava para a garganta.
Respirava cada vez mais rápido, aproveitando as passagens. A coisa continuava a
subir. Olhou para Lucienne. Sorriu sem uma crispação, e também esse sorriso
vinha do interior. Recostou-se na cama, sentindo a lenta subida que havia em
si. Olhou para os lábios inchados de Lucienne e, por trás dele, o sorriso da
terra. Ele os via com o mesmo olhar e com o mesmo desejo. "Daqui a um
minuto, daqui a um segundo", pensou. A subida terminara. E, pedra entre as
pedras, ele retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos mundos imóveis.
Trecho do livro A morte feliz, de Albert Camus, da Editora Record. Este romance
não foi publicado em vida. Escrito entre 1936 e 1938, pode ser considerado uma
espécie de preâmbulo de O estrangeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário