segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Devanear...

O Alienista, de Machado de Assis
por Christian von Koenig em 05/07/2013
O forçamento e a inadequação ao apresentar Machado de Assis (1839–1908) ao público brasileiro torna a leitura desse grande escritor um fardo, ao invés do prazer que verdadeiramente é. Este texto trabalhará no sentido de informar ao leitor que desconhece por completo a obra machadiana e também àquele que o achou maçante numa primeira leitura. Para tanto, falarei de O Alienista, que aparece na obra Papéis Avulsos (1882), já na fase realista do escritor, considerada também a de maior maturidade.

Primeiro, o que se há de reparar são os cenários e a linguagem da época. De um vocabulário rico, sem ser exagerado, Machado revela-se um desafio ao leitor acostumado às leituras nada exigentes. Um feliz desafio, é claro, pois sua leitura gratifica o leitor com o enriquecimento de sua expressão.

Muitos têm a curiosidade de saber como é a experiência de ler grandes escritores em seus idiomas originais: Balzac em francês, Dickens em inglês, Goethe em alemão… Pois em Machado de Assis há a oportunidade de ler-se um mestre em português. E prestar atenção não somente ao que se descreve, mas também a como se escreve, traz suas recompensas. Metade do que acontece nas obras dele é ação, enquanto outra é sentido, é sutiliza da língua.


Quanto à ambientação de suas obras, não se pode pedir que escrevesse seus romances passados no século XXI. Entretanto, não se duvide de sua contemporaneidade. O Brasil de Machado de Assis em 1880 está mais próximo do Brasil de hoje do que muitos escritores atuais têm procurado representar.

É aí que chagamos a O Alienista, conto breve e belo exemplo da segunda fase literária do autor. Em Itaguaí, Rio de Janeiro, reside o ilustre médico Simão Bacamarte. Comparado a Hipócrates, o pai da Medicina moderna, Simão está mais próximo de um Messias da ciência, por sua devoção à causa científica.

O foco de sua medicina está nas doenças psicológicas e por isso constrói em Itaguaí um hospício, a Casa Verde, onde possa tratar os enfermos mentais. Até esse momento o texto apresenta os personagens e a cidade, com a eventual dose de ironia do escritor.

Em seguida, quando Bacamarte passa a recolher a maioria da população para tratamento, sob a escusa de estarem loucos, então O Alienista transforma-se numa crítica refinada à vida política e social no país. Pequenos costumes não escapam à percepção de Machado, como a demora em se pagar empréstimos. Tampouco se restringe à questão financeira; quem dos leitores já emprestou um livro, um filme, e não viu mais sombra disso? Pois esse leitor se identificará e achará graça de uma passagem como:

“Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde.”

A inteligente virada da obra ocorre quando, depois de constatar que dois terços da população encontrava-se sob seus cuidados, Simão Bacamarte conclui que o certo na verdade é ser errado da cabeça, ou seja, a loucura é o padrão; a sanidade, exceção. E então fez liberar todos os ex-loucos e passou a caçar todo aquele que fosse são, justo e leal, porque estes sim formavam uma exceção.

É isso o que temos de mais brasileiro até hoje: o erro institucionalizado, consagrado pela maioria. A injustiça, a corrupção, a fraude, o desvelo, a intriga, a fofoca… tudo isso considerado a norma padrão em nossa sociedade. Ai daquele que tenha retidão ou se oponha a tais práticas, este sofrerá de exclusão pior que a de residir na Casa Verde.

Assim se constitui O Alienista, obra provocante e cheia de sutilizas. Simão Bacamarte pode ser o protagonista, mas o maior personagem ali é a própria sociedade, o conjunto de todos os personagens que habitam o universo desse conto. Focado principalmente no convívio social e político, Machado imagina com pena perspicaz e cômica como a loucura tornou-se via de regra em nossas terras.

Esse é um aspecto pouco comentado sobre ele – Machado de Assis é engraçado. Não são muitos escritores que podemos ler por serem excelentes e, ao mesmo tempo, podermos lê-los por prazer alegre, para rirmos. No entanto a graça de Machado está mais na ironia discreta do que na chalaça, na zombaria exagerada, recomendada por um outro  personagem de Papéis Avulsos*.

E Machado é crítico. É um jornalista do Brasil daquela época a escrever para o futuro, até mesmo para nós de agora, sobre um povo e uma terra dos quais viemos e que ainda tempos muito em comum.

Eis o Machado que deveríamos ler: atual, inteligente, popular e engraçado.

*Final do discurso do Pai, no conto Teoria do Medalhão.

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