A Copa de Lula
A ‘verdade técnica’ da presidente não
passa de um véu destinado a esconder o significado financeiro da festa macabra
promovida pela Fifa
Todos podem protestar em todos os
lugares — exceto nas imediações das sagradas arenas da Copa das Confederações.
Essa foi a mensagem enviada pelas autoridades na “semana quente” das
manifestações populares. Sem intervenção policial, manifestantes cercaram
palácios e interromperam vias expressas. Em São Paulo, o eixo sensível da
Avenida Paulista, onde se concentram os hospitais, foi liberado para os
protestos. Contudo, nas cidades-sede do evento, batalhões de choque delimitaram
um “perímetro de segurança nacional” e atacaram manifestantes pacíficos que
tentavam ultrapassá-lo. A regra do protesto ilimitado excluiu os “territórios
internacionais” sob controle efetivo da Fifa. Nunca, numa democracia, um
governo nacional se curvou tão completamente a uma potência externa desarmada.
A bolha policial de isolamento dos
estádios estendeu-se por dois a três quilômetros. Não se tratava de assegurar o
acesso de torcedores às arenas, mas de impedir que as marcas dos protestos
ficassem impressas sobre as marcas da Fifa e das empresas patrocinadoras. “A
condição prévia para a Copa é a cessão temporária da soberania nacional à Fifa,
que assume funções de governo interventor por meio do seu Comitê Local.” Nesse
espaço, dois anos atrás, Adriano Lucchesi e eu definimos a Copa do Mundo de
2014 como uma “festa macabra” justificada pela “lógica perversa do
neopatriotismo”.
Não fomos os únicos, nem os
primeiros. O jornalista Juca Kfouri deplorou o triunfo dos bons companheiros
Lula da Silva e Ricardo Teixeira na hora da escolha do Brasil como sede do
megaevento de negócios travestido de competição esportiva. O ex-jogador Romário
honrou seu mandato parlamentar denunciando sistematicamente a farra de desvio
de dinheiro público, que ainda faz seu curso. “A Fifa é o verdadeiro presidente
do Brasil hoje”, explicou com a precisão e simplicidade de que carecem tantos
doutos cientistas políticos. Mas a rapinagem dos piratas ficou longe da mira
dos partidos de oposição, que preferiram ocupar assentos periféricos na nave da
Copa, compartilhando dos brindes erguidos em convescotes de autoridades,
empresários e cartolas. Alguém aí está surpreso com a aversão dos manifestantes
ao conjunto de nossa elite política?
3 x 0. No domingo, encerrou-se o
ensaio geral para o que será a Copa mais cara da história. A festa macabra
custará, no mínimo, R$ 28 bilhões, quase quatro vezes mais que a realizada na
África do Sul em 2010 (R$ 7,3 bilhões) e perto de três vezes mais que as Copas
na Alemanha em 2006 (R$ 10,7 bilhões) e no Japão/Coreia em 2002 (R$ 10,1
bilhões). “Com o dinheiro gasto para construir o Mané Garrincha poderiam ter
sido construídas 150 mil casas populares”, calculou Romário. Ele tem razão: a
arena de Brasília, a mais cara de todos os tempos, custou R$ 1,7 bilhão.
Obedecendo a uma compulsão
automatizada, o ministro Gilberto Carvalho apontou um dedo acusador para a
imprensa, que “teve um papel no moralismo, no sentido despolitizado” das
manifestações populares. No mundo ideal desse senhor “politizado”, uma imprensa
chapa-branca monopolista, financiada pelas empresas estatais, desempenharia a
função de explicar aos saqueados que o saque é parte da ordem natural das
coisas. “Sem a imprensa, não somos nada”, concluiu Jérôme Valcke, o zagueiro de
várzea da Fifa, que também gostaria de ter um “controle social da mídia”.
Um séquito de analistas
especializados na arte da empulhação dedica-se, agora, a criticar os cartazes
dos manifestantes que contrapõem a Copa à “saúde” e à “educação”. No seu
pronunciamento desesperado do fim da “semana quente”, Dilma Rousseff recorreu
aos sofismas desses analistas para exercitar o ilusionismo. Os recursos
queimados na fogueira das arenas “padrão Fifa”, disse a presidente, são “fruto
de financiamento”, não dinheiro do Orçamento. Mas ela não disse que a fonte dos
financiamentos concedidos pelo BNDES são títulos de dívida pública emitidos
pelo Tesouro, nem que a a diferença entre os juros reais pagos pelo Tesouro e
os juros subsidiados cobrados pelo BNDES é coberta pelos impostos de todos os
brasileiros, da geração atual e da próxima.
A “verdade técnica” da presidente não
passa de um véu destinado a esconder o significado financeiro da festa macabra
promovida pela Fifa e pelo governo brasileiro. No seu conjunto, a operação Copa
2014 é uma vasta transferência de renda da população para a Fifa, as empresas
patrocinadoras do megaevento e as empreiteiras contratadas nas obras civis. Uma
CPI da Copa revelaria as minúcias da rapinagem, destruindo no caminho
governantes em todos os níveis que se engajaram na edificação de elefantes
brancos com recursos públicos. É com a finalidade de evitá-la a qualquer custo
que uma corrente de parlamentares resolveu aderir à ideia de uma CPI da CBF.
Sob a pressão das ruas, cogita-se a hipótese de entregar os escalpos de José Maria
Marin e Ricardo Teixeira numa bandeja de prata para salvar a reputação das
autoridades políticas cujas assinaturas estão impressas nas leis e contratos da
Copa.
“O Brasil nos pediu para sediar a
Copa do Mundo. Nós não impusemos a Copa do Mundo ao Brasil.” Joseph Blatter, o
poderoso chefão da “família Fifa”, não mente quando repete seu mantra
preferido. O “Brasil”, na frase, significa “Lula da Silva”. A Copa mais cara da
história é a síntese perfeita do legado político do presidente honorífico. À
entrada do Mineirão, no jogo entre México e Japão, funcionários a serviço da
Fifa arrancaram das mãos de dois torcedores cartazes onde estavam escritas as
palavras proibidas “escola” e “saúde”. Os batalhões de choque em postura de
batalha no perímetro de “segurança nacional” da Copa e os agentes da censura
política em ação nos portões das arenas protegem mais que a imagem da Fifa e
das marcas associadas. Eles protegem, sobretudo, a imagem de Lula, o regente da
festa macabra.
Demétrio Magnoli é sociólogo.
Leia mais sobre esse assunto em
http://oglobo.globo.com/opiniao/a-copa-de-lula-8906887#ixzz2Y6thKAvK
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