O episódio do “parricídio” e a
salvação da inteligência no Sofista de Platão
Em
O Sofista, de Platão, o autor discute o “parricídio” e a salvação da
inteligência, além de buscar determinar a estrutura da ciência humana das
ideias.
Em
o Sofista, de Platão, o autor buscava determinar a estrutura da ciência humana
das ideias.
O
esforço para determinar a estrutura de uma ciência humana das ideias, isto é,
uma ciência do inteligível puro, em que intuição e discurso se aliam em unidade
coerente, é o objetivo principal do diálogo sofista de Platão. Mas o problema
da constituição dessa ciência absoluta, que para Platão coincide com a
filosofia ou a dialética, necessita da elaboração de elementos que, ao
excluírem o relativismo da opinião, como no “Teeteto”, e que ao afirmarem as
ideias, como no “Parmênides”, possam estabelecer uma concepção de ciência.
Ao
tentar definir o sofista e distingui-lo do filósofo e do político, Platão
dá-nos indícios daquilo que será a temática do diálogo. Separando o que é, ou
seja, a essência, do que parece ser, ele coloca em discussão o estatuto
ontológico de um objeto, que remonta a Parmênides, e logo evidencia a
necessidade de uma reformulação. Veja o porquê.
Os
sofistas como contraditores ensinam, mediante salário, sua arte. Os assuntos
sobre os quais pretendem formar bons contraditores versam sobre os fenômenos da
terra e também os celestes, assim como sobre as leis e a política. Sejam em
reuniões públicas ou particulares, mostram-se hábeis no contradizer,
comunicando aos demais o que sabem sobre o devir e o ser. E é assim que eles
incutem na juventude que somente eles são os mais sábios, fazendo com que sejam
voluntariamente procurados e sejam pagos para ensinar sua arte.
No
entanto, é impossível a um homem ser onisciente e, assim, a pretensão do
sofista de possuir um saber universal não passa de uma aparência, de uma falsa
realidade. Por outro lado, como é que um incompetente sobre determinada técnica
pode contradizer um competente? Há na disposição do sofista de discutir sobre
todas as coisas, contradizendo até mesmo um especialista e colocando essa
disponibilidade de conhecer tudo ao alcance de quem quiser aprender e puder
pagar, uma falsa aparência de ciência universal. Não é de se acreditar que quem
pudesse não só explicar e contradizer, mas também produzir e executar todas as
coisas, logo depois as venderia tão barato e as ensinaria em tão pouco tempo.
Quem assim se pretende, não faz outra coisa senão imitações e homônimos da
realidade, tal como a pintura e o discurso. E é a esse último que o sofista
consegue dar um “brilho” especial para ilustrar a sua sabedoria e provocar o
efeito ilusório que mantém sua reputação.
Desse
modo, Platão, que no diálogo expõe seu pensamento através do Estrangeiro de
Eleia, aborda uma tênue, porém fundamental, distinção: mostrar e parecer sem
ser realmente; dizer algo sem, entretanto, dizer com verdade. Isso seria supor
a existência da falsidade e do erro. Contudo, como encontrar na realidade, para
dizer ou pensar que o falso é real sem que já ao proferi-lo não se caia em
contradição? Esse é o refúgio do sofista que se utiliza da relação entre “ser,
pensar e dizer” de Parmênides para se defender da acusação de “artífice de ilusão”.
Nega ele a possibilidade de dizer ou pensar o falso e se apoia no poema do
eleata:
“Jamais
obrigarás os não seres a ser; Antes afasta teu pensamento desse caminho de
investigação”.
Decorrente
disto é o que observa Lima Vaz: “É que se toda proposição é verdadeira, nenhuma
o é. A atribuição lógica não tem fundamento real estável e a ciência das ideias
dissolve-se num relativismo universal”.
Surge,
enfim, o problema da atribuição lógica de dois objetos reais de forma que possa
exprimir a sua realidade ontológica, isto é, a sua verdade e que exige a
reformulação da visão unívoca do ser parmenídico. Mas, como bem notou Lima Vaz,
essa reformulação, que ocorrerá no episódio do “parricídio”, não é uma
refutação a Parmênides. Ao contrário, visa salvar a verdade essencial da
posição eleática que significa a primazia da inteligência e do inteligível
sobre a multiplicidade confusa do sensível. E nesse problema está intrínseco o
problema da dialética como ciência, já que é preciso saber quais relações
ideais supremas e universais devem ser implicadas em todo juízo dialético, de
modo a preservar, a um só tempo, a identidade consigo mesma e a comunhão mútua
das ideias. Seria a ciência do ser verdadeiro.
Platão
aceita de Parmênides a afirmação intransigente do inteligível puro, objeto
imutável, acima das flutuações da opinião. Mas esse intelectualismo é um
monismo radical que concebe as ideias como puramente estáticas e sem
estabelecer nenhum tipo de relação. Sem renunciar ao intelectualismo, Platão
tentará solucionar o problema resguardando a unidade e a multiplicidade no
objeto da inteligência.
Para
os gregos, o Lógos ou discurso é a expressão do ser ou do objeto, não se
podendo, assim, atribuir a um ser o não ser absoluto, ou seja, é-se impossível
expressar o não ser no discurso. Então, o sofista poderia replicar da acusação
de ilusionista ou produtor de imagens questionando sobre o que se entende por
“imagem”. A imagem é uma cópia do objeto verdadeiro e por isso mesmo não se
identifica com ele. Seria ela então um não ser. Porém, há nela algum ser, um
ser por semelhança que a impede de ser um não ser absoluto. Então existe um
estranho entrelaçamento entre ser e não ser que obriga o reconhecimento de que
o não ser de alguma forma é e o ser, sob algum aspecto, não é. A possibilidade
do erro reside nessa união e ela permite que se atribua ao sofista o domínio do
simulacro e de caracterizar sua arte como uma arte ilusionista que afasta do
real e que forma apenas opiniões falsas em seus discípulos porque ele, o
sofista, admite que o não ser é inexprimível, impronunciável, inefável, ou
seja, que o não ser é. Aqui Platão sente a necessidade de sair do plano
lógico-verbal e chamar a juízo o ser uno de Parmênides.
A
definição do ser uno, na qual o ser é compreendido como totalidade absoluta e
em que a unidade exclui a pluralidade requer uma investigação mais detalhada.
Por exemplo, a dupla denominação de ser e uno ao ser é possível se ele se
apresenta como absoluto? Como também lhe atribuir um nome qualquer sem
reintroduzir na unidade absoluta a dualidade nome/coisa, transformando a
unidade absoluta em unidade puramente verbal? Todavia, se o ser-uno se
apresenta como um todo constituído de partes, a unidade a ele atribuída não é a
unidade absoluta. Se o ser é um todo não composto por partes, ou o todo existe
e o ser como uno é afetado pela dualidade do ser e do todo ou o todo não existe
e o ser não possui unidade que é própria do todo e seria, então, infinita
pluralidade. Seria essa a redução ao absurdo que Platão realizou do ser uno de
Parmênides que nega a pluralidade e mostra que tal negação implica na
destruição da unidade do ser.
Para
melhor fundamentar sua argumentação, Platão vai ainda mais longe. Ele vai fazer
uma crítica sobre a tradição filosófica aglutinando as várias tendências em
dois grandes polos: os materialistas, também considerados fisiólogos,
pluralistas ou mobilistas; e os idealistas, que por sua vez podem ser
confundidos com os monistas ou imobilistas. Platão censura nos antigos a
negligência da questão da essência, do ser (o que é?), limitando-se apenas às
qualidades do objeto.
Aos
primeiros, critica o fato de admitirem a existência apenas do que pode afetar a
sensibilidade e oferecer resistência, ou seja, de corpos inseridos no devir.
Contra eles, Platão levanta as seguintes hipóteses: ou o ser é um terceiro
elemento, ou se identifica com um dos elementos ou com todos eles. Em qualquer
hipótese há contradição interna entre o ser como tal em sua unidade e o grupo
de elementos com os quais é identificado e por isso haveria a determinação
prévia da noção do ser em si mesma, na pura inteligibilidade.
Aos
segundos, que separam o devir do ser e acreditam que o corpo está em contato
com o devir enquanto a alma contempla o verdadeiro que é incorpóreo, é uma
ideia que se mantém sempre idêntica, Platão questiona o sentido dessa comunhão.
Como é que a alma, que é ativa, conhece algo que é imóvel, ou seja, passivo,
sem que este, a partir desse processo, entre em movimento?
O
que Platão quer evidenciar é que não há nem mobilismo nem imobilismo
universais. Ele propõe aos materialistas a existência de algumas formas
incorpóreas para quebrar a rigidez de sua posição. Se se aceita que o que torna
a alma justa, sábia e bela, é a presença e a posse da Justiça, da Sabedoria e da
Beleza e como esses objetos não são corpóreos, então se admite alguns entes
incorpóreos. Para os idealistas, é necessário que se introduza o movimento como
possibilidade de relação, no seio do ser inteligível, a fim de superar a
rigidez do uno eleático que os “amigos das ideias” atribuíam a elas. É nesse
sentido que Platão cunha o termo dýnamis (potência), que significa a capacidade
de agir ou de sofrer ação e que possibilita a superação das duas posições
extremas, além de permitir que a natureza do ser se revele. E, no “Sofista”,
esse termo expressa o caráter de um princípio, ativo ou passivo de relação, a
qual, de forma generalizada, compreende a própria relação ideal de ser
conhecido, que não implica nenhuma alteração real no objeto. É a dýnamis que implica
a atividade na faculdade de conhecer (sujeito-alma) e a passividade no objeto
conhecido. É a própria condição de sua realidade já que é através dela que se
manifesta o ser real. E se essa relação é excluída do plano da existência
(portanto legada ao da geração) e não se admite que a alma conheça e que a
existência (objeto) seja conhecida, tem-se o seguinte dilema: ou se recusa ao
ser, em sua totalidade, o movimento, e, portanto, a vida, a alma e a
inteligência, ou se concede que estas pertençam ao ser total, mas lhe recusa o
movimento. A primeira hipótese nega a realidade da inteligência e, então, a
possibilidade de conhecer. A segunda é, evidentemente, um absurdo.
Assim,
Platão recusa a identidade do ser ao movimento e ao repouso. Ao contrário, o
ser é exterior e é por eles participado. A alma (e com ela o movimento) entra
no âmbito perfeitamente real com o mesmo título das Ideias, sob pena de se
tornar impossível todo o conhecimento. Porém, esse movimento não afeta a
realidade intrínseca das ideias, pois a condição essencial do conhecimento é a
permanência de estado, de modo e de objeto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário