A Alca, o livre comércio e o
futuro da América do Sul
1.
A dependência externa e a hegemonia do capital financeiro se expressam, no
campo do pensamento, em duas características marcantes: a incapacidade de
definir uma agenda própria de desenvolvimento e a tirania das questões de curto
prazo. As sociedades que se submetem por muito tempo a essas condições perdem a
capacidade de reconhecer seus próprios problemas e suas próprias
potencialidades. Abandonam a ideia de definir um projeto próprio. Passam a
gravitar em torno de temas artificiais e importados. No caso do Brasil, bom
exemplo é o intenso debate em torno da criação da Área de Livre Comércio das
Américas (Alca), mais uma entre tantas imposições de fora para dentro.
Surgida
a partir de uma decisão e de uma proposta do Estado norte-americano, a Alca -
se vier a existir - permitirá o livre fluxo de mercadorias, serviços e capitais
dentro do espaço hemisférico. É o nosso assunto do mês. Pela natureza deste
texto, e pelo fato de realizarmos, no âmbito do LPP, um acompanhamento
detalhado da evolução das negociações (acompanhamento publicado mensalmente
nesta página), faremos uma abordagem geral da questão, tentando entender os
problemas de fundo nela envolvidos e evitando descrever passo a passo os
caminhos, bastante erráticos, das negociações em curso.
2.
A proposta original dos Estados Unidos para a Alca - proposta que enfrenta
dificuldades, mas não foi abandonada - era muito abrangente.
As
tarifas de importação seriam drasticamente reduzidas e, no limite, depois de
esgotado um prazo, abolidas; nenhum país poderia proteger sua indústria, que
passaria a ficar exposta à competição continental, independentemente das
condições reais de competitividade.
Todas
as compras governamentais - não só dos governos nacionais, mas também dos
estaduais e municipais - teriam de ser feitas por meio de licitações
oferecidas, em igualdade de condições, a empresas nacionais e estrangeiras
(oriundas dos países que aderissem ao tratado), ficando proibidas a
incorporação, nesses contratos, de cláusulas que fixassem obrigações adicionais
aos investidores.
As
áreas de saúde, educação e previdência, entre outras, seriam consideradas
serviços comuns, ficando também abertas ao controle externo; em vez de serem
espaços de cidadania, regulados por políticas públicas, passariam a ser, cada
vez mais, espaços mercantis.
A
legislação sobre propriedade intelectual, copyright, patentes, segredos
comerciais e marcas seria mais restritiva que a da Organização Mundial do
Comércio (OMC), tendo como modelo a própria legislação dos Estados Unidos.
Quanto
aos investimentos, os governos seriam proibidos de definir políticas que
favorecessem os investidores nacionais, mesmo que fosse apenas para
compensá-los por deficiências estruturais ou de natureza sistêmica (tributação
excessiva, infraestrutura deficiente, etc.); a definição de investimento seria
a mais ampla possível, de modo a incluir todas as formas de ativos: ações,
concessões, contratos, títulos de dívida, etc.
Investidores
privados passariam a desfrutar de um estatuto legal antes reservado apenas a
Estados nacionais; o investidor de um país membro da Alca teria direito de
recorrer a uma arbitragem internacional (no âmbito do Banco Mundial, por
exemplo) para questionar decisões de um Estado, que assim aceitaria ser julgado
por uma Corte situada fora de seu espaço de soberania.
O
poder regulatório dos Estados seria praticamente reduzido a zero, com o
correspondente aumento da margem de manobra de empresas multinacionais.
Os
governos seriam proibidos de estabelecer critérios (por exemplo, usar um mínimo
de fatores de produção locais), compromissos (por exemplo, de transferência de
tecnologia) ou requisitos de desempenho (por exemplo, metas de exportação) para
investidores de outros países membros; também seria proibido definir qualquer
tipo de preferência para bens produzidos no próprio país.
A
circulação de capital seria liberada: os investidores teriam o direito de
transferir recursos para dentro ou para fora de qualquer país da Alca sem
restrições, seguindo as taxas de câmbio do mercado; isso significaria garantir,
por tratado internacional, livre fluxo de divisas e conversibilidade plena das
moedas.
3.
Para conduzir negociações tão amplas, o Congresso dos Estados Unidos,
paradoxalmente, concedeu um mandato muito restrito ao Executivo daquele país:
nos termos da resolução em vigor (chamada Trade Promotion Authority, ou TPA),
só são negociáveis no contexto da Alca os temas que interessam aos Estados
Unidos, remetendo-se para o âmbito da Organização Mundial do Comércio todos os
demais (legislação antidumping, agricultura, etc.). Isso despertou, desde logo,
sérias dúvidas quanto à possibilidade de um acordo, pois o Estado
norte-americano nunca emitiu uma sinalização clara de que aceitaria abrir seu
mercado doméstico nos setores em que sua competitividade é menor.
Na
verdade, a iniciativa da Alca veio acompanhada, nos últimos anos, de um aumento
do protecionismo, especialmente dirigido àqueles setores (aço, têxteis,
calçados, suco de laranja, açúcar) em que o Brasil é mais competitivo. Pode ser
coincidência, mas também pode ser uma estratégia de negociação.
O
paradoxo das pressões norte-americanas sobre o Brasil, na direção do livre
comércio, fica claro quando se sabe que o grupo dos quinze principais produtos
exportados pelo Brasil paga tarifa de importação de 45,6% (média ponderada)
para entrar nos Estados Unidos. Inversamente, os quinze produtos mais
exportados pelos Estados Unidos pagam 14,3% no Brasil. Além disso, há toda
sorte de barreiras não tarifárias - sanitárias e técnicas, que incluem
condições de licenciamento de produtos, embalagem, ingredientes utilizados,
rotulagem, etc. - de identificação bastante complexa e sujeitas a regras pouco
objetivas. Por fim, há os mecanismos específicos de defesa comercial. Coerentes
com uma longa história prévia, em que prevaleceu o protecionismo, os Estados
Unidos são um péssimo exemplo quando se trata de liberdade comercial e abertura
de mercados.
4.
Embora sempre esboçando resistências, o Brasil, nos últimos anos, foi sendo
enredado em um processo de negociação que durante muito tempo seguiu a agenda e
o cronograma definidos pelos Estados Unidos. Com a posse do novo governo, em
janeiro de 2003, o Ministério das Relações Exteriores, sob a chefia de Celso
Amorim, adotou uma política negociadora mais dura, que no limite admite a
possibilidade de que o acordo não seja assinado, ou então seja substancialmente
desidratado, com a formação daquilo que se passou a chamar de "Alca
light": haveria um tratado geral minimalista, que poderia ser
complementado por acordos bilaterais entre países. Ao mesmo tempo, Antônio
Palocci (Fazenda), Roberto Rodrigues (Agricultura), Luís Fernando Furlan
(Desenvolvimento) e Henrique Meirelles (Banco Central) defendem uma negociação
"construtiva", que conduza efetivamente à formação da Alca,
buscando-se obter concessões norte-americanas setor a setor. Nosso governo
está, pois, dividido nessa questão.
5.
Como pano de fundo da negociação em curso, há sinais crescentes - e
preocupantes - de que o Brasil parece estar conformado com a atual divisão
internacional do trabalho, concentrando seus esforços em extrair maiores
vantagens de sua condição de exportador de produtos primários. Isso se reflete
em declarações reiteradas do presidente Lula, que apontam numa mesma direção.
Ouçamos o que ele disse logo depois da reunião da OMC em Cancun: "Em
nenhum momento estamos pedindo qualquer benefício ou privilégio. O que estamos
pedindo é que os países desenvolvidos façam uma política de comércio exterior
em que sejamos tratados com igualdade. Nós queremos apenas a oportunidade de
competir livremente."
Lula
tem-se apresentado no cenário internacional como o campeão do
"verdadeiro" livre comércio, combatendo a hipocrisia dos países
ricos, que dizem defender essa causa, mas não a praticam. É aí que mora o
perigo. Pois, se o Brasil, como diz Lula, quer "competir livremente"
com os Estados Unidos, é forçoso reconhecer que a adesão à Alca - uma Alca
talvez modificada, em relação à indecente proposta norte-americana original -
permanece sendo uma ameaça real. Ao contrário do que muitas vezes se dá a
entender, a posição de Lula não é incompatível com os interesses fundamentais
dos Estados Unidos. Sobre isso, Armando Boito escreveu: "A política de
Lula colide com os interesses dos produtores rurais estadunidenses, com os do
comércio de produtos agrícolas daquele país e com um setor do Estado que
entende ser importante uma política de autonomia agrícola por razões de
segurança nacional. (...) Porém, o setor mais reacionário da burguesia
estadunidense, o grande capital financeiro, não parece apoiar a política
protecionista, pelo menos na sua forma e no seu radicalismo atuais. O capital
financeiro quer que o Brasil obtenha divisas para continuar pagando, em moeda
forte, os juros da dívida. (...) [Por isso,] The Wall Street Journal aplaudiu,
em editorial, a pressão do governo Lula contra os subsídios agrícolas que
'desnaturam o livre comércio'."
O
tema merece, como se vê, uma reflexão cuidadosa.
6.
Os fundamentos da posição defensora do livre comércio são bem conhecidos: ele
seria o caminho para a prosperidade coletiva. Em um ambiente de ampla exposição
à concorrência, as vantagens competitivas se distribuiriam de acordo com as
potencialidades específicas de cada país. Com o tempo, cada um encontraria o
lugar que lhe permitiria a inserção mais vantajosa (comumente identificada com
a sua dotação de fatores de produção) no comércio global, e a soma das
inserções mais vantajosas para cada um representaria a situação mais vantajosa
para todos. Para construí-la, ainda segundo essa visão, é preciso maximizar o
potencial dos fluxos de comércio, e a melhor forma de fazer isso é eliminar
todas as barreiras que protegem ineficiências ou reproduzem situações de
relativo isolamento. Políticas específicas de proteção, indução ao
desenvolvimento e industrialização passam a ser condenadas.
As
origens históricas dessa posição também são bem conhecidas. Realizada a
Revolução Industrial, a economia política inglesa foi dominada pela ideia de
que a agricultura tenderia a operar com rendimentos decrescentes, pela
incorporação de terras piores, o que conduziria toda a economia, no limite, a
um estado estacionário, com concentração do excedente nas mãos dos detentores
da renda da terra. Para que a Inglaterra escapasse desse destino - que, segundo
se imaginava, provocaria o colapso de sua indústria -, o Parlamento inglês, sob
influência de David Ricardo, adotou nas primeiras décadas do século XIX o
princípio do livre comércio, que na prática significava a abertura do país à
importação de bens agrícolas, os únicos produzidos pelos demais países.
Estabeleceram-se assim as bases de uma divisão internacional do trabalho em que
a Inglaterra se especializava em bens industriais e um enorme conjunto de
países se especializava em bens primários. Para impedir que esses países
repudiassem o arranjo, a potência defensora do livre comércio construiu o maior
império até então conhecido, de modo a garantir, pela força, que os espaços
agrícolas permanecessem sob controle do centro. O livre comércio, desde então,
tem sido frequentemente uma imposição dos impérios.
Hegemônica
na Inglaterra, essa visão nunca foi unânime na economia política, na Europa ou
fora dela, nem mesmo no século XIX. Basta lembrar que o principal livro de
Friedrich List, pai da moderna economia alemã, chama-se Sistema nacional de
economia, e que os Estados Unidos adotaram políticas fortemente protecionistas
durante todo a sua longa fase de desenvolvimento industrial. Eis o que dizia
Abraham Lincoln: "Não sei muito a respeito de tarifas no comércio
exterior, mas sei isto: quando compramos produtos fabricados lá fora, ficamos
com os produtos e os estrangeiros ficam com o dinheiro. Quando compramos
produtos fabricados dentro do nosso país, ficamos com os produtos e com o
dinheiro."
A
questão de fundo é simples: o livre comércio fortalece e aprofunda a divisão
internacional do trabalho existente em cada momento. Por isso, ao longo da
história, os países que ocupam o centro do sistema-mundo (Inglaterra no século
XIX, Estados Unidos no século XX) defendem essa prática, enquanto os países
retardatários e periféricos (Estados Unidos do século XIX, países asiáticos e
latino-americanos no século XX) procuram formas de defender-se de uma exposição
em campo aberto, que lhes impediria de desenvolver sua própria base produtiva.
Estes últimos países precisam selecionar os influxos que lhes chegam do centro
do sistema, de modo a compatibilizá-los com o conjunto de exigências e
necessidades de suas próprias sociedades nacionais. Se não fizerem isso, não
conseguem definir projetos próprios e ficam cada vez mais para trás.
7.
A reflexão sobre comércio internacional e mecanismos de proteção foi
substancialmente aperfeiçoada, na América Latina, pelos trabalhos de Raúl
Prebisch. Seu principal argumento pode ser assim sintetizado: o comércio
exterior de países periféricos apresenta forte assimetria, com exportações
concentradas em bens primários e de baixo valor agregado, e importações de bens
e serviços mais intensivos em capital, técnica e conhecimento. A dinâmica
desses dois subconjuntos é muito diferente. Pois, na medida em que a renda das
sociedades cresce, diminui a participação relativa do primeiro subconjunto de
bens (elasticidade-renda menor do que 1), seja pela menor utilização de
matérias-primas nos produtos finais, seja pela descoberta de novos materiais
sintéticos, seja pelo aumento relativo da participação dos bens industriais e
dos serviços na cesta de consumo das populações. O inverso também é verdadeiro:
os países ricos produzem, em maior proporção, os bens cuja demanda cresce mais
do que o crescimento da renda (elasticidade-renda maior do que 1). Qualquer
debate sério sobre comércio internacional deve partir da constatação dessa
assimetria. Por causa dela, políticas de proteção aplicadas no centro e na
periferia do sistema têm consequências bem diferentes.
A
proteção dos mercados dos países centrais, quando atinge os produtos ofertados
pela periferia, retarda o crescimento e aumenta a vulnerabilidade dos países
periféricos, reduzindo assim sua capacidade de contribuir para o crescimento do
comércio mundial, visto como um todo. A proteção seletiva dos mercados dos
países periféricos, ao contrário, ao atuar no sentido de corrigir as diferenças
de elasticidades-renda, ajuda a maximizar o comércio mundial. Pois, por
definição, os países periféricos em via de modernização continuarão
necessitando importar no limite de suas possibilidades, e por isso farão sempre
o maior esforço exportador que esteja ao seu alcance. A proteção seletiva de
seus mercados permitirá diminuir sua vulnerabilidade externa, tornando mais
completa a sua base produtiva e maior a sua renda interna, sem diminuir (e até
aumentando) o volume de suas importações. Esse tipo de proteção alterará apenas
a composição dessas importações, concentrando-as naqueles produtos que os
países pobres não têm condições de produzir.
Como
se vê, Raúl Prebish desmontou o argumento liberal em seus próprios termos, pois
a adoção de níveis adequados de proteção pelos países periféricos, ao aumentar
sua renda sem diminuir sua propensão global a importar, maximiza - ao contrário
de minimizar - o potencial do comércio mundial. Por isso, ele dizia, "a
confiança do GATT [hoje Organização Mundial do Comércio] no livre jogo das
forças de mercado e a proposta, dela decorrente, de reduzir igualmente as
tarifas só seria correta se se aplicasse a países com estruturas econômicas
homogêneas." Ou seja: quando o centro se abre para receber exportações da
periferia, a periferia responde aumentando suas importações oriundas do próprio
centro. Quando a periferia se abre da mesma maneira, a recíproca não é
verdadeira. Neste caso, o déficit externo dos países periféricos tende a
agravar-se rapidamente, forçando-os a aumentar seu endividamento (e sua
fragilidade) ou a reduzir suas importações.
Portanto,
além de não ser justo, não é economicamente eficiente submeter às mesmas regras
comerciais países que apresentam estruturas muito diferentes. Num sistema
internacional marcado por forte heterogeneidade, a maximização do livre
comércio não coincide com a maximização do comércio. Para obter esta última,
que é desejável, é preciso reconhecer o fato histórico de que as trajetórias de
desenvolvimento, entre países e entre regiões, são desiguais.
8.
Também ao contrário do que diz o argumento liberal, o processo de
industrialização dos países retardatários nunca reforçou nenhuma tendência ao
seu isolamento e ao consequente enfraquecimento das trocas internacionais. No
caso brasileiro, isso fica nítido quando se observam, no auge desse processo, a
imensa afluência de capital e de populações estrangeiras em direção ao nosso
território, bem como o incremento e a diversificação do nosso comércio externo.
A industrialização não reduz, mas aumenta, a necessidade de importar. Na medida
em que ela avança, o estrangulamento externo é sucessivamente reposto, e mesmo
agravado, pela necessidade de comprar no exterior máquinas, equipamentos,
peças, insumos, etc., exigindo que se aumente, em paralelo, a capacidade de
exportar.
Por
fim, esse processo tampouco produz uma tendência à ineficiência sistêmica. Como
regra geral, qualquer empreendimento industrial começa a funcionar em escala
inferior à sua escala ótima. Isso é ainda mais nítido no ambiente de economias
periféricas. Por isso, numa primeira fase, que pode ser mais ou menos longa, a
mera comparação de custos de bens nacionais com bens importados similares frequentemente
mostra resultados desfavoráveis à produção local. Mas o fato de os custos
internos serem mais altos que os preços de importação não implica que essa
indústria seja antieconômica para o país. Não tem sentido comparar isoladamente
custos industriais internos com preços de importação (por esse critério, nenhum
país retardatário deveria industrializar-se). O relevante é comparar o aumento
da renda nacional decorrente da expansão industrial com o que teria sido obtido
se os mesmos recursos tivessem sido investidos nas atividades exportadoras
necessárias para sustentar as importações dos bens que passaram a ser
produzidos internamente. É esse critério - o critério econômico por excelência
- que mostra a racionalidade do esforço de industrialização e a necessidade de
protegê-lo.
Por
tudo isso, ao apresentar-se como o campeão do "verdadeiro livre
comércio", o presidente Lula, um pouco por deslumbramento, um pouco por
ignorância, um pouco por irresponsabilidade, rompe com a melhor tradição do
pensamento econômico latino-americano e adere ao discurso tradicionalmente
hegemônico nos países centrais.
9.
Voltemos à Alca. Muitos dizem que não podemos ser contra ela porque não sabemos
como será. As negociações estão em curso. No artigo "Como será a
Alca", escrito para a Agência Cartamaior, o embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, secretário-geral do Itamaraty, refutou com muita clareza esse
argumento. "A Alca", diz Samuel, "terá de ser muito semelhante
ao Nafta, acordo de livre comércio que engloba os Estados Unidos, o Canadá e o
México. (...) Terá de ser compatível com o disposto no artigo XXIV do GATT-94,
acordo que faz parte da OMC e que estabelece as condições para o reconhecimento
da Alca pela OMC e por seus membros." Para ser compatível com a legislação
internacional, a Alca acarretaria a eliminação de todas as barreiras a, no
mínimo, 85% do comércio hemisférico, medido em valor, no prazo de até dez anos.
Além disso, como vimos, os Estados Unidos desejam que a Alca, a exemplo do
Nafta, inclua um conjunto enorme de outros fluxos, além das mercadorias, de
modo que "o eventual acordo terá de ser compatível [também nesses temas]
com as normas da OMC". Mas não teria sentido fazer a Alca para apenas
reproduzir nela as normas da OMC, que já estão em vigor. Por isso, os Estados
Unidos, coerentemente, insistem em obter o que chamam de normas
"OMC-plus", ainda mais favoráveis aos interesses das suas empresas
multinacionais.
O
mesmo raciocínio se aplica às comparações entre Alca e Nafta: a Alca, diz
Samuel, só terá sentido se incluir normas "Nafta-plus": "As
normas do Nafta já se aplicam às relações econômicas entre os três países que
constituem em conjunto cerca de 88% do PIB das Américas (...). As dificuldades
para a aprovação do Nafta pelo Congresso norte-americano em 1994; as críticas
de certos setores da sociedade norte-americana à sua implementação; a aprovação
por apenas um voto, na Câmara dos Deputados, da Trade Promotion Authority
(TPA); a firme negativa norte-americana em negociar o que chamam de leis de
defesa comercial (antidumping, anti-subsídios, salvaguardas); a recente
legislação norte-americana que concede amplos subsídios de proteção à produção
e à exportação agrícola; e a lista de 300 produtos 'sensíveis' - tudo isso
revela com clareza as dificuldades, para os próprios Estados Unidos, de
negociar e aprovar qualquer esquema que se afaste das linhas gerais do Nafta.
Por outro lado, seria difícil aos Estados Unidos, principal membro do Nafta,
conceder ao Brasil tratamento mais favorável do que aquele que concedeu, nos
mesmos casos, ao Canadá e ao México. (...) A Alca será como o Nafta. Naquilo
que for diferente, será diferente para ser mais favorável aos Estados
Unidos."
10.
Trata-se de uma má notícia. Pois a experiência do Nafta é passível de muitos
questionamentos. Artigo recente da economista indiana Jayat Gosh mostra que a
uniformização de normas e a eliminação de barreiras resultaram em maior
controle da economia mexicana pelas corporações norte- americanas, com a
multiplicação das chamadas indústrias "maquiladoras", que só realizam
em território mexicano as últimas etapas do processo produtivo, etapas que
agregam menos valor e utilizam mão-de-obra barata. Também para a agricultura
mexicana, a mais frágil desse acordo regional, os impactos foram desastrosos.
As estatísticas oficiais mostram que houve aumento da concentração fundiária,
falência de pequenos e médios produtores, explosão de desemprego no campo (com
6 milhões de postos de trabalho a menos), aumento do êxodo para as cidades e
das migrações para o exterior. A agricultura mexicana ficou totalmente
submetida ao agronegócio dos Estados Unidos. Em 1992, o México importava US$
790 milhões em alimentos. Em 1999, cinco anos depois de inaugurado o Nafta,
importava US$ 8 bilhões, inclusive produtos que antes exportava, como arroz, batata
e algodão. Hoje, importa dos Estados Unidos 50% do que consome. A "livre
competição" com uma agricultura que goza de altos subsídios e tem uma base
técnica mais avançada foi fatal.
11.
Se a Alca será como o Nafta, tampouco procedem comparações com a experiência da
União Europeia. Para compreender a natureza da Alca, é instrutivo ressaltar
essas diferenças.
(a)
A União Europeia começou a nascer depois da Segunda Guerra Mundial, com a
formação da Comunidade do Carvão e do Aço, uma iniciativa conjunta de países
europeus para reconstruir suas siderurgias e seus sistemas energéticos
destruídos pelo grande conflito bélico. Depois, na década de 1960, essa
iniciativa se desdobrou no Mercado Comum Europeu. Realizando inúmeros estudos e
passos intermediários, a integração europeia foi progredindo lentamente, sendo
testada e avaliada, até chegar recentemente à forma atual. O processo levou
cerca de 50 anos. Os Estados Unidos querem inaugurar a Alca em 2005, sem nenhum
passo intermediário.
(b)
A União Europeia integrou parceiros que mantêm entre si um relativo equilíbrio.
A Alemanha, maior economia da Europa, representa cerca de 25% do PIB regional,
seguida por economias do porte da França, Inglaterra, Itália e Espanha. A menor
destas - a Espanha, com PIB de US$ 900 bilhões - é significativamente maior que
a maior economia da América Latina. No Hemisfério Americano, a situação é bem
diferente. De um lado estão os Estados Unidos, a maior economia do mundo,
dominada por empresas gigantescas, com alta produtividade e tecnologia de
ponta, com um produto interno bruto de quase US$ 12 trilhões. Esse país detém,
sozinho, cerca de 80% da capacidade produtiva do Hemisfério (ou seja, quatro
vezes o PIB de todos os demais países somados, inclusive o Canadá e o México).
Seu orçamento militar é da mesma ordem de grandeza do PIB do Brasil! De outro
lado estão os demais países latino-americanos, o maior dos quais é o próprio
Brasil, com pouquíssimas empresas de grande porte, quase nenhuma marca com peso
internacional, com um produto interno bruto de apenas US$ 500 bilhões. A Alca
"integra" um gigante e um grupo de pequenos atores.
(c)
A União Europeia concedeu cidadania continental aos povos. Todos passaram a
portar o mesmo passaporte europeu, podendo deslocar-se livremente pelo continente,
escolhendo onde morar e trabalhar. O mercado de trabalho foi unificado. Na
Alca, garante-se a livre circulação de capital e de mercadorias (fatores que a
sociedade norte-americana tem em abundância), mas não de pessoas (fator que as
sociedades latino-americanas têm em abundância). Os Estados Unidos não aceitam
sequer negociar a remoção, ou mesmo diminuição, de barreiras à entrada de
trabalhadores latino-americanos em seu território.
(d)
A União Europeia criou uma moeda única, emitida por um Banco Central Europeu,
onde todos os Estados do continente têm representação. Não há indícios de que
os Estados Unidos aceitem abrir mão de sua moeda para compartilhar uma moeda
continental com a Argentina, o Brasil, a Bolívia e a Guatemala. A moeda da Alca
será o dólar, cuja emissão continuará sendo uma prerrogativa exclusiva do
Estado norte- americano, segundo os interesses de sua economia.
(e)
A União Europeia reconheceu a existência de disparidades econômicas e sociais
significativas no continente e adotou políticas ativas de desenvolvimento para
os países e regiões menos desenvolvidas. A Alca é apenas business. Embora em um
continente muitíssimo mais desigual que a Europa, não prevê nenhum fundo de
desenvolvimento, nenhuma compensação por perdas, nenhuma ajuda a regiões ou
setores deprimidos ou prejudicados.
12.
Em síntese: cada Estado europeu, visto isoladamente, era fraco para enfrentar a
competição mundial pela riqueza e o poder no século XXI, diante dos Estados
Unidos já dominantes e da Ásia em ascensão. A União Europeia foi concebida para
manter os povos europeus nessa disputa, por meio da criação de um Estado
continental. O caso da Alca é justamente o inverso: concebida de forma
unilateral pelos Estados Unidos, ela elimina a possibilidade de um projeto
comum latino- americano, integrando o continente, de forma subordinada, à área
regional sob controle direto da grande potência. Em depoimento ao Congresso dos
Estados Unidos, o general Collin Powell, secretário de Estado do governo Bush,
foi direto ao ponto: "Com a Alca, nosso objetivo é garantir para as
empresas norte-americanas o controle de um território do Ártico à Antártida,
com livre acesso em todo o Hemisfério, sem nenhum obstáculo ou dificuldade,
para os nossos produtos, serviços, tecnologia e capital."
As
autoridades norte-americanas, como se vê, não hesitam em dizer quais interesses
defendem. Principalmente quando falam para as instituições de seu próprio país.
13.
Com a extinção dos espaços econômicos nacionais em todo o Hemisfério americano,
do Alasca até a Patagônia, ficaria anulada a capacidade de cada Estado conceber
e aplicar suas próprias políticas de desenvolvimento, conforme a especificidade
de cada país. As consequências econômicas são evidentes.
Ouçamos,
primeiro, Paulo Nogueira Batista Jr.: "A Alca acarretaria uma formidável
perda de autonomia na condução de aspectos essenciais da nossa política
econômica. De todas as negociações internacionais em curso, essa é a que
apresenta a maior ameaça à soberania do país. O Brasil ficaria comprometido,
por acordo internacional, a manter seu mercado interno sempre aberto para as
exportações dos Estados Unidos. As empresas brasileiras se veriam expostas à
vigorosa concorrência das grandes corporações norte-americanas, com todo o seu
poderio financeiro, tecnológico e comercial. O Brasil teria de abrir mão de uma
série de instrumentos de política governamental, tornando-se incapaz de
implementar um projeto nacional de desenvolvimento. Ficariam fora do nosso
alcance muitos instrumentos e políticas a que recorreram sistematicamente os
países hoje desenvolvidos, inclusive os Estados Unidos, ao longo de seu
processo histórico de desenvolvimento. (...) Uma área de livre comércio com os
Estados Unidos produziria efeitos destrutivos em boa parte do sistema produtivo
brasileiro, especialmente nos setores mais avançados, em que a primazia das
empresas norte-americanas é inquestionável (bens de capital, componentes
eletrônicos, química, eletrônica de consumo, informática etc.). A economia
brasileira tenderia a regredir à condição de economia agrícola ou
agroindustrial e produtora de bens leves ou tradicionais." A questão
relevante, então, passa a ser: que impacto tem, sobre as estruturas internas da
sociedade brasileira, vista como um todo, um esforço de crescimento liderado
pela exportação de bens agrícolas ou agroindustriais? Pode o crescimento
brasileiro assumir esse perfil, garantindo um mínimo de justiça social e
estabilidade? A resposta é não. O ano de 2003 foi exemplar quanto a isso. De um
lado, as exportações brasileiras tiveram um crescimento espetacular (+14,2%); o
saldo comercial subiu de US$ 13 bilhões para US$ 24 bilhões; o agronegócio
prosperou e exultou. De outro lado, a economia como um todo teve crescimento
negativo (-0,2%); o desemprego e a pobreza aumentaram; a instabilidade social e
política cresceu. Recolocar o Brasil na condição primário-exportadora, mais de
70 anos depois da Revolução de 1930, é um retrocesso inviável, que teria consequências
dramáticas. Basta lembrar que, hoje, temos um parque industrial diversificado e
83% da nossa população vivem em cidades.
14.
Ouçamos, de novo, Samuel Pinheiro Guimarães: "A Alca é um projeto de
criação de um território econômico único, onde não haverá nenhuma barreira para
a circulação de bens. Nessas condições, o Estado brasileiro abdicará da
possibilidade de ter política comercial, porque não poderá mais existir nenhum
obstáculo ao comércio. Se abdica da possibilidade de ter política comercial,
abdica também da possibilidade de ter política industrial, porque abre mão de
uma parte importante dessa política que é a proteção a novos investimentos. Sem
política industrial, perde o sentido ter política tecnológica, pois ela só faz
sentido se gerar inovações que vão reduzir custos no processo produtivo."
Há,
ainda, outros riscos talvez mais graves: a Alca exigiria o aprofundamento das
políticas de abertura comercial e financeira praticadas a partir da década de
1990.
Ficaríamos
impedidos de reassumir o controle dos fluxos de capitais que transitam por
nosso espaço econômico. Sem o controle desses fluxos, o Banco Central permanecerá
refém do capital especulativo, com sua permanente ameaça de abandonar a moeda
nacional e buscar abrigo no dólar. A instabilidade do real tenderá a
agravar-se, com crescente perda da nossa capacidade de estabelecer políticas
monetárias coerentes com o nosso desenvolvimento.
A
exigência de livre fluxo de divisas e a conversibilidade plena das moedas, que
vimos no início, ameaçaria a própria sobrevivência das moedas nacionais no
continente, pois, num espaço econômico unificado, se tornaria mínima a capacidade
dos países de defender suas moedas de movimentos especulativos cada vez mais
intensos. Instalada a Alca, a exigência seguinte será o uso do dólar como
referência permanente, ou seja, será a constituição formal da "área do
dólar" na economia mundial. A moeda emitida pelos Estados Unidos passaria
a organizar diretamente toda a atividade econômica continental, o que
corresponderia a concentrar no Estado norte-americano, com exclusividade, a
mais importante prerrogativa da soberania nacional. As elites latino-americanas
seriam plenamente absorvidas nesse espaço econômico alargado, como sócias
menores, passando a denominar toda a sua riqueza em moeda forte, rompendo
definitivamente quaisquer laços de solidariedade com os seus espaços nacionais
de origem. Daí a atração que certos setores, como o do agronegócio, sentem
diante da proposta da Alca.
15.
O que se passa na América Latina tem relação direta com o que acontece no resto
do mundo. A formação da União Europeia e o fortalecimento da China mostram que
o sistema internacional está transitando para uma nova ordem, com vários
centros de poder. Os espaço econômico da União Europeia rivaliza em tamanho com
o dos Estados Unidos, e o euro ameaça a disputar, no mundo, a primazia com o
dólar. As economias do Leste da Ásia, por sua vez, crescem muito rapidamente e
formam uma área cada vez mais integrada, com o Estado chinês cumprindo um papel
regional cada vez mais relevante. Nos três principais continentes - a América
do Norte, a Europa e a Ásia - surgem megaestados regionais, comandando grandes
economias, com larga base territorial e populacional.
A
América do Sul, o Oriente Médio a África são as grandes regiões do mundo que
ainda não definiram os seus próprios projetos regionais e não constituíram, nem
estão em via de constituir, os seus megaestados. Estão marginalizadas. O
Oriente Médio vive sob ocupação militar. A África está à deriva, devastada
pelas guerras internas, a pobreza e a Aids. Se a ordem internacional fosse
justa e solidária, o mundo inteiro teria de realizar um mutirão de ajuda a
esses povos que, escravizados no passado, construíram, com o seu sacrifício, a
riqueza de outras regiões.
Quanto
à América do Sul, duas grandes possibilidades estão colocadas. A primeira, que
tem na formação Alca seu centro de articulação, reforçaria e tornaria quase
irreversíveis os processos de fragilização do continente, com sua incorporação
formal a uma área regional sob controle direto dos Estados Unidos. A segunda é
defendida por um número cada vez maior de cidadãos: a constituição de um
projeto próprio latino-americano que garanta a união dos nossos povos e a
inserção soberana dos nossos países no sistema internacional. Seria a
realização das aspirações dos mais generosos pensadores e estadistas da nossa
história, de Simon Bolívar a José Martí, de Ernesto Guevara a Darcy Ribeiro.
Os
dois projetos estão em choque neste momento, e o continente terá de decidir por
um deles nos próximos anos.
Laboratório
de Políticas públicas da UERJ
Fundação
Rosa Luxemburgo
Página
na internet: www.outrobrasil.net
Economia
e política econômica
Data
do fechamento: 2 de maio de 2004
César
Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)
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