Eliminem a 'verdade'
DEMÉTRIO MAGNOLI,
SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL:
DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR - O Estado de S.Paulo
A palavra "verdade", na
Comissão da Verdade e da Reconciliação instituída pela África do Sul, tinha um
significado judicial, relacionado aos poderes do organismo. Nossa Comissão da
Verdade, ao contrário, não tem poderes judiciais. Por esse motivo a palavra
"verdade" deveria ser eliminada de seu nome.
As prerrogativas da comissão
sul-africana, presidida pelo arcebispo Desmond Tutu, abrangiam não apenas a
investigação de violações de direitos humanos cometidas durante o regime do
apartheid, mas, crucialmente, a concessão de reparações às vítimas e de anistia
individual a perpetradores. A comissão brasileira não dispõe das duas últimas
prerrogativas: as reparações são da esfera da Comissão de Anistia e a anistia
já foi concedida a todos, por lei emanada da ditadura militar, recepcionada por
sucessivos governos civis e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. O mandato
de nossa comissão está circunscrito por lei à produção de um relatório sobre
violações de direitos humanos por motivação política entre 1946 e 1988. Para
não abusarmos da noção de verdade seu nome deveria ser algo mais modesto, como
Comissão de Inquérito.
Verdade histórica é diferente de
verdade judicial. Nos tribunais, e numa comissão com poderes judiciais, como a
sul-africana, a verdade é uma narrativa factual organizada à luz dos códigos
legais. A decisão final, transitada em julgado, é uma "verdade" irrecorrível,
com implicações penais ou cíveis. A "verdade" histórica, por outro
lado, é uma interpretação dos eventos do passado que oscila ao sabor do
"espírito do presente" - isto é, dos valores predominantes em cada
época. Verdades distintas concorrem entre si nas obras de História, formando um
diálogo pluralista e, em princípio, infindável. Uma comissão sem estatuto
judicial, mas batizada com o nome da verdade, almeja a verdade histórica.
Contudo, por definição, a verdade histórica não pode ser emoldurada com o selo oficial
- a não ser como contrafação fabricada por regimes totalitários.
A Lei de Anistia cercou as violações
de direitos humanos cometidas pela ditadura militar com uma muralha de
interdição, cassando ao sistema judiciário o poder de julgar crimes políticos
declarados imprescritíveis por tratados internacionais. Vergonhosamente, a
elite política brasileira teceu um consenso em torno da lei promulgada no
derradeiro governo militar - e, em razão de tal consenso, as maiorias
parlamentares de sustentação de Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma
recusaram-se a suprimir o interdito. Num intercâmbio lamentável, a proteção dos
violadores foi paga, por meios pecuniários e simbólicos, pela Comissão de
Anistia. Se não mudar seu nome, a Comissão da Verdade cumprirá o papel indigno
de emitir o cheque simbólico final na agônica transação.
Na sua acepção judicial, a verdade
está relativamente livre do jogo da política e da ideologia. A comissão
sul-africana ouviu testemunhos de crimes cometidos pelo Estado e também das
organizações de resistência, contextualizando-os segundo os princípios do
Direito. Se o Brasil tivesse abolido a Lei de Anistia, tribunais emitiriam
sentenças sobre as incontáveis violações cometidas impunemente pela ditadura
militar e também sobre os escassos casos de crimes das organizações armadas que
não foram julgados à época. Isso, infelizmente, não ocorrerá - e a ausência do
Poder Judiciário coloca a Comissão da Verdade diante do dilema expresso nas
interpretações históricas dissonantes a respeito dos "anos de
chumbo".
A narrativa do combate nas trevas
entre os "dois lados", representados pelo regime militar e pelas
organizações armadas de esquerda, é uma fraude histórica e uma tese imoral. A
repressão política, as prisões e a tortura atingiram os opositores em geral, em
sua maioria desarmados, não apenas as correntes minoritárias da esquerda
armada. O poder de Estado, com seus aparelhos judiciais, policiais e militares,
não pode ser equiparado aos grupos irregulares de militantes das organizações seduzidas
pela estratégia do "foco revolucionário". O assassinato e a tortura
nos calabouços são definidos no Direito Internacional como crimes contra a
humanidade, distinguindo-se por sua gravidade dos demais tipos de crimes.
Carlos Marighella e Carlos Lamarca praticaram crimes asquerosos. Mesmo assim,
eles não podem ser equiparados aos crimes do delegado Sérgio Fleury, do general
Ednardo D'Ávila Mello ou do presidente Emílio Garrastazu Médici.
A historiografia, tanto quanto os
tribunais, têm ferramentas para destruir o falso sinal de identidade desenhado
com a finalidade de providenciar um álibi para a ditadura militar. O leitor
decente sabe separar as narrativas históricas legítimas das fábulas ideológicas
destinadas a justificar crimes contra a humanidade. Contudo a pretensão
impossível de estatizar a verdade histórica no regime democrático confere à
narrativa delinquente sobre os "dois lados" a aura de uma
"verdade sufocada" em confronto desigual com uma "verdade dos
vencedores".
Uma comissão de inquérito consagrada
ao relato dos crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar seria
capaz de iluminar fatos, personagens e circunstâncias ainda desconhecidos,
oferecendo material valioso aos historiadores. Em contraste, uma Comissão da
Verdade sem poderes judiciais está condenada a fabricar interpretações estatais
sobre o passado, algo com valor de verdade similar ao dos retratos encomendados
pelos mecenas.
O conceito africano de ubuntu
relaciona-se à ideia de que a humanidade de cada indivíduo depende da dignidade
humana de todos os demais. A comissão sul-africana tinha a missão escrita de
promover "ubuntu", não "retaliação" nem
"vitimização". Nossa comissão não pode promover ubuntu, mas ao menos
não precisa engajar-se em operações simbólicas de retaliação e vitimização.
Eliminem a "verdade", senhores comissários!
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