O vexame anunciado
Foi preciso que uma integrante da CPI do Cachoeira,
a senadora Kátia Abreu, do PSD do Tocantins, repreendesse os colegas por
estarem "dando ouro para um chefe de quadrilha com cara de cínico"
para que eles decidissem pôr fim à farsa do depoimento do contraventor Carlos
Augusto Ramos, cujo apelido dá nome ao abagunçado inquérito parlamentar sobre
as suas amplas relações ilícitas. Foi uma farsa - e mais um vexame para os
partidos que afoitamente o instituíram - por dois motivos.
Primeiro, porque a CPI sabia, como todos quantos
acompanham o melancólico espetáculo em curso no Congresso Nacional, que o
bicheiro entraria mudo e sairia calado da sessão - ou melhor, falaria apenas
para dizer que não falaria. O seu advogado, o ex-ministro da Justiça Márcio
Thomaz Bastos, havia anunciado que o cliente faria pleno uso do direito
constitucional de permanecer em silêncio para não se incriminar eventualmente.
E para não convalidar as evidências coletadas pelas operações da Polícia
Federal que o advogado quer ver declaradas ilegais.
Ainda assim a oitiva se arrastou por cerca de duas
horas e meia, com mais de 50 perguntas inúteis, ouvidas pelo inquirido com
apropriado ar irônico beirando o deboche, até que a senadora desse o seu
exasperado alerta. Com as suas indagações, diligentemente anotadas por Thomaz
Bastos, sentado à esquerda de Cachoeira, os parlamentares de fato entregavam o
ouro ao presumível bandido, sob a forma de um roteiro para a sua defesa - se
não perante à CPI à qual ele só aceitaria voltar para continuar mudo - no
processo a que responde na Justiça Federal de Goiás.
A outra razão por que o depoimento merece ser
considerado uma farsa está nas perguntas que senadores e deputados deram de
fazer a fim de tirar o proveito que pudessem dos holofotes da mídia, embora cientes
de que o País não parou para acompanhar o momentoso evento nem prenderia o
fôlego quando o assunto aparecesse nos telejornais da noite. Os congressistas
alinhados com o Planalto exibiram a sua lealdade insistindo uma vez e outra, e
outra ainda, na documentada proximidade de Cachoeira com o governador de Goiás,
o tucano Marconi Perillo.
Já a oposição, além de fazer o mesmo em relação ao
governador petista do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, tentou cavoucar os
bastidores do primeiro governo Lula. Com isso, uns e outros comprovaram que a
CPI surgiu para levar à berlinda os respectivos adversários políticos, como se
o esquema Cachoeira não fosse rigorosamente suprapartidário. Mirando o lado de
lá, os perguntadores naturalmente blindavam o lado de cá, o deles. Seguiam
assim à risca a máxima de Vaccarezza, o deputado petista que mandou ao
governador fluminense, Sérgio Cabral, do PMDB, o tranquilizador SMS do
"você é nosso e nós somos teu".
A base aliada vinha tentando blindar também a
recordista de contratos com o governo federal e o do Rio de Janeiro, a
empreiteira Delta, então do querido amigo de Cabral, Fernando Cavendish, tido
como "sócio oculto" de Cachoeira. Na semana passada, o relator da
CPI, deputado Odair Cunha, do PT de Minas Gerais, excluiu o empresário e a
matriz da construtora da lista de pessoas físicas e jurídicas a terem os seus
sigilos quebrados. Com isso, pareceu comprar pelo valor de face a alegação da
Delta nacional de que desconhecia as traficâncias de seu ex-diretor no
Centro-Oeste Cláudio Abreu, parceiro do contraventor.
Como que atenuando o fiasco em que a CPI se
enfiara, a certa altura do interrogatório de Cachoeira o deputado Onyx
Lorenzoni, do DEM de Santa Catarina, trouxe à luz as descobertas de uma
investigação de que pouco se fala - a Saint-Michel, deflagrada pelo Ministério
Público na sequência da Monte Carlo, conduzida pela Polícia Federal. Os
procuradores apuraram que a cúpula da Delta deu a Abreu procuração para
movimentar pelo menos dez contas bancárias da empresa no País. De uma delas, já
se sabia, saíram R$ 39 milhões para firmas fictícias usadas pela organização de
Cachoeira.
Diante disso, a CPI está obrigada a quebrar os
sigilos da Delta em âmbito nacional e do seu ex-controlador. É, de resto, a sua
tábua de salvação.
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