MICROFÍSICA
DO PODER. A CASA DOS LOUCOS
"No fundo da prática científica existe um discurso que
diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma
verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no
entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa
mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto,
os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui
e em todo lugar. Mas achamos também, e de forma tão profundamente arraigada
na nossa civilização, esta idéia que repugna à ciência e à filosofia: que a
verdade, como o relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de
emboscá-la e a habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios,
lugares privilegiados, não só para sair da sombra como para realmente se
produzir. Se existe uma geografia da verdade, esta é a dos espaços onde reside,
e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la.
Sua cronologia a é a das conjunções que lhe permitem se produzir como um
acontecimento, e não a dos momentos que devem ser aproveitados para
percebê-la, como por entre duas nuvens. Poderíamos encontrar na história toda
uma tecnologia desta verdade: levantamento de suas localizações, calendário
de suas ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz.
Exemplo desta geografia: Delfos, onde a verdade falava, fato
que surpreendia os primeiros filósofos gregos; os lugares de retiro no antigo
monarquismo; mais tarde, a cátedra ou do magistério, a assembléia dos fiéis.
Exemplo desta cronologia; aquela que achamos de forma elaborada na noção
médica de crise, e cuja importância se promulgou até o fim do século XVIII. A
crise, tal como era concebida e exercida, é precisamente o momento em que a
natureza profunda da doença sobe à superfície e se deixa ver. É o momento em
que o processo doentio, por sua própria energia, se desfaz de seus entraves,
se liberta de tudo aquilo que impedia de completar-se e, de alguma forma, se
decide a ser isto e não aquilo, decide o seu futuro ? favorável ou
desfavorável. Movimento em certo sentido autônomo, mas do qual o método pode
e deve participar. Este deve reunir em torno dela todas as conjunções que lhe
são favoráveis e prepara-la, ou seja, invoca-la e suscita-la. Mas deve também
colhê-la como se fosse uma ocasião, nela inserir sua ação terapêutica e
combate-la no dia mais propício. Sem dúvida, a crise pode ocorrer sem o
médico, mas se este quiser intervir, que seja segundo uma estratégia que se
imponha à crise como momento da verdade, pronta a sub-repticiamente conduzir
o momento a uma data que seja favorável ao terapeuta. No pensamento e na
prática médica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeito de um ritual
e ocasião estratégica.
Numa ordem inteiramente diversa, a prova judiciária também era uma ocasião de se manipular a produção da verdade. O ordálio que submetia o acusado a uma prova, o duelo no qual se confrontavam acusado e acusador ou seus representantes, não eram uma maneira grosseira e irracional de detectar a verdade e de saber o que realmente tinha acontecido quanto à questão em litígio. Eram uma maneira de decidir de que lado Deus colocava naquele momento o suplemento de sorte ou de força que dava a vitória a um dos adversários. O êxito, se tivesse sido conquistado conforme o regulamento indicava em proveito de quem devia ser feita a liquidação do litígio. E a posição do juiz não era a de um pesquisador tentando descobrir uma verdade oculta e restituí-la na sua forma exata, devia sim organizar a sua produção, autenticar as formas rituais na qual tinha sido suscitada. A verdade era o efeito produzido pela determinação ritual do vencido.
Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos
séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco
sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo
discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá:
acontecimento. Ela não é encontrada, mas sim suscitada: produção em vez de
apofântica. Ela não se dá por mediação de instrumento, mas é provocada por
rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégia e
não método. Deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que
o buscava, a relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por
controle, dominação e vitória: uma relação de poder".
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 9 ed. Tradução Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 113-114
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sexta-feira, 18 de maio de 2012
Viva a sabedoria...
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