Os negros, as cotas e as elites
Os ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF), ao analisarem a ação ajuizada pelo partido Democratas (DEM), em
2009, contra o sistema de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB),
finalmente decidiram, por unanimidade, que a reserva de vagas em universidades
públicas com base nesse sistema é constitucional. O tema já rendeu páginas e
páginas em jornais e revistas, horas e mais horas nas TVs e rádios no Brasil,
circulou com intensidade nas redes sociais. A Universidade Estadual da Bahia
(UNEB) e a Universidade de Brasília (UnB) foram as instituições pioneiras a
lançar a ideia.
Na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), tempos atrás, o assunto tornou-se motivo de controvérsia,
dentro e fora de seus muros – a imprensa carioca e muitos outros veículos de
circulação nacional pautaram a matéria com todo o destaque que ela mereceu.
Vencida essa etapa crucial, chegou a hora da imprensa, junto com a sociedade
organizada, principalmente a classe estudantil, mirar suas armas no alvo que considero
ainda mais relevante: a difícil tarefa de manter o negro na universidade
brasileira. Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes), a maioria dos seus alunos (67,16% deles
pertencentes às classes B2, C, D e E) não completou seus cursos de graduação na
área de exatas.
Esse dado até pode ser minimizado
pelo fato da grande maioria dos universitários menos favorecidos
financeiramente estar matriculada em cursos rotulados erroneamente de “segunda
linha”, como os da área de humanas, nos quais, a princípio, se gasta menos com
material de apoio, como livros e instrumentos, os mais diversos. Mas, a
necessidade de trabalho para o sustento familiar, diferentemente do que
acontece com alunos de melhores condições financeiras, ainda coloca os negros
em situação desfavorável. Sabe-se que muitos alunos abandonam seus estudos
porque precisam trabalhar e não encontram tempo para isso.
Maior alocação de recursos. Será que o negro brasileiro e alunos
advindos de escolas públicas (a grande maioria da raça negra, vale dizer) têm
condições de se manter em um curso de graduação, sendo eles os mais
sacrificados financeiramente? Não bastasse a altíssima taxa de desemprego, a
situação se agrava quando tomamos conhecimento de dados como os da Fundação
Seade, de São Paulo, que indica ser o salário médio de um branco na capital
paulista de R$ 1.919,20, enquanto o do negro, na mesma função, é de menos da
metade, algo em torno de R$ 690,54. O que pensar das condições salariais do
negro no Norte e Nordeste do país, regiões onde, historicamente, a riqueza
nacional sempre teve pouca representatividade?
Soma-se a isso a falta de base do
estudante negro, em sua grande maioria vinda do ensino público, ser um enorme
entrave para que a conclusão de seu curso se torne uma realidade. De acordo com
pesquisa feita pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(Inep), em 2005, dos 4,6% alunos negros ingressantes nas universidades apenas
2,8% concluíram os seus cursos. É preciso saldar a dívida social que o Brasil
tem para com os negros, mas de maneira consistente e definitiva. Ao contrário
do que muitos querem sustentar, não é justo, nem ético, promover políticas
incompletas de resgate da dignidade dos afrodescendentes.
São alguns séculos de total
desrespeito para com um povo que foi jogado de maneira sórdida no mercado de
trabalho, por ocasião da abolição da escravatura, sem a menor condição de
competir com os imigrantes que aqui aportaram e que, de maneira heroica,
ajudaram a construir toda a riqueza que hoje possuímos.
Agora, mais do que nunca, se faz
necessário atuar verdadeiramente nos ensinos fundamental e médio, sem a
costumeira demagogia que mascara a falta de qualidade do ensino em detrimento
do discurso da quantidade de alunos matriculados. Ambas precisam caminhar
juntas. É preciso cobrar, com veemência, das autoridades responsáveis, maior
alocação de recursos para ações indispensáveis ao processo de melhoria do
ensino do primeiro e segundo graus: capacitação de mão-de-obra, melhorias
salariais, investimentos em estruturas físicas e tecnológicas, fornecimento de
material de apoio etc.
Uma batalha foi ganha. Paralelamente, o mesmo tratamento
deve-se dar ao ensino superior, acrescentando, é claro, investimentos
específicos que só dizem respeito à universidade com suas funções determinadas.
Não é mais concebível, por exemplo, que a grande maioria das universidades
públicas não ofereça aulas noturnas, propiciando maior número de vagas ao mesmo
tempo em que daria condições para que seus alunos pudessem trabalhar. Concordo
totalmente com a opinião do jornalista Gilberto Dimenstein, da Folha
de S. Paulo, quando afirma, muito consciente da grandiosidade do
problema, gostar da ideia de abrir espaço para negros nas faculdades,
especialmente para alunos de escolas públicas. “Mas se tal abertura não for
acompanhada de ações complementares, o projeto vai comprometer toda a ideia das
cotas”, conclui Dimenstein.
É preciso, portanto, reinventar,
democratizar não só o ensino superior, mas todo o sistema educacional
brasileiro e, para tanto, dependemos de muita vontade política. Devemos sempre
desconfiar de políticas voltadas para setores minoritários e à margem da
sociedade, visto que o poder, com suas artimanhas, tem como uma das suas
principais armas lançarem projetos paliativos visando anuviar os reais
problemas enfrentados pelos excluídos. Este filme nós bem conhecemos.
Não há, pelo menos até estes tempos,
um real propósito, por parte de nossas elites, em promover a inclusão social de
castas que poderiam efetivamente tomar seus lugares no ápice da pirâmide
social. Será que o poder constituído não está utilizando a mídia com segundas
intenções? Será que os bem intencionados da área educacional e a sociedade como
um todo não entraram de gaiato em um navio avariado?... Vale refletir.
Para finalizar, com a intenção de
quem bota lenha na fogueira, de quem certamente espera ver a justiça social
reinar um dia neste país, deixamos outra pergunta no ar: será que as elites
brasileiras suportarão tamanha revolução educacional, a maior de toda a nossa
história?... O primeiro sinal de resistência já foi anunciado, com todas as
letras e holofotes, um dia após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir pela
legalidade das cotas raciais: a Universidade de São Paulo (USP) e as
universidades estaduais Paulista (Unesp) e de Campinas (Unicamp), não por acaso
localizadas no estado mais rico do país, não pretendem adotar o sistema. Como
se pode verificar, é preciso que todos os envolvidos na questão das cotas não
esmoreçam. Somente uma batalha foi ganha, e a luta deve continuar.
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