domingo, 3 de novembro de 2013

E agora Arnaldo?

Biografias da discórdia

Proibir biografias não autorizadas de circular é censura prévia? A polêmica foi reacesa após grupo de artistas, onde estão Roberto Carlos e Chico Buarque, se posicionar contra a comercialização de obras sem autorização
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Alan Santiagoalan@opovo.com.br
 



Primeiro foi o sambista Noel Rosa, em 2004. Depois, o cantor Roberto Carlos em 2007. A ele se seguiriam o escritor Guimarães Rosa, o cangaceiro Lampião, o poeta Paulo Laminski – para citar alguns. 

A Justiça brasileira tem se mostrado benfazeja a herdeiros, familiares ou mesmo personalidades que tiveram suas vidas devassadas em biografias, acatando o pedido deles para barrar ou retirar do mercado obras consideradas invasivas a suas intimidades.

O mecanismo é resguardado por lei. Os legisladores brasileiros, ao fazer o novo Código Civil, sancionado em 2002, optaram por valorizar o princípio da privacidade. O artigo 20 afirma que uma informação, seja através de livro ou filme, pode ser proibida se atingir “a honra, a boa fama ou a respeitabilidade” ou se se destinar “a fins comerciais”. O artigo 21 reafirma que a privacidade é inviolável.

Essa ênfase acabou fazendo o texto da lei tangenciar outro direito, o da liberdade de expressão. “De acordo com o Código Civil, como resumiu o cartunista Duke, o neto do Lobo Mau tem poderes para proibir uma biografia contando que o seu avô comeu a vovozinha”, afirma o biógrafo Mário Magalhães, autor de Marighella - o guerrilheiro que incendiou o mundo, que recebeu três prêmios de melhor biografia, incluindo o Jabuti.

“Conforme essa norma obscurantista, não estamos autorizados a informar que um traficante condenado vendia drogas, caso ele não autorize. Que país se constrói assim, unicamente com biografias laudatórias?”, completa.

Para Joselia Aguiar, que assina Jorge Amado – uma biografia, “a história de um personagem cujos problemas com o álcool alteraram sua trajetória profissional a ponto de levá-la a pique não pode prescindir dessa informação. Um livro como esse também serve de alerta, reflexão”.

Mas até que ponto alguém pode entrar na privacidade de outra pessoa, ainda que seja uma personalidade conhecida, com a finalidade de expor isso publicamente? Até que ponto, ainda, negar informações de pessoas públicas não é negar o direito da sociedade de entender sua própria história?

Complexo, o assunto é tema de leis se arrastam no Congresso, desde 2008 (ver infográfico na página 6). A última delas, do deputado federal Newton Lima (PT-SP), pretende reescrever o texto do Código para evitar proibições de biografias. O projeto está para ser votado a qualquer momento.
 
Tom polêmico
Alguns acreditam que isso é um atentado à privacidade e um reforço ao lucro do mercado editorial. Eles formam o grupo Procure Saber, que até a última quinta-feira, 31, teve na produtora Paula Lavigne, uma de suas maiores vozes. 

O tema explodiu na imprensa quando Lavigne - ex-mulher de Caetano Veloso e diretora da Uns Produções e Filmes- declarou à Folha de S.Paulo que o grupo, composto por nomes como Caetano, Gilberto Gil, Chico Buarque e Roberto Carlos, era contra biografias não autorizadas. O que se seguiu não foi menos do que uma guerra de opiniões, o mais das vezes apaixonadas.

Nem dentro da família Buarque houve consenso. A ex-ministra Ana de Holanda é a favor das biografias; Chico, seu irmão, contra. No domingo passado, Roberto Carlos foi à TV dizer que não era contra as biografias – mas elas precisariam de “ajustes”.

Um vídeo, produzido pelo Procure Saber, tenta afastar a pecha que lhes foi atribuída de que são censores, adotando um tom mais conciliador. A saída de Lavigne da linha de frente do grupo segue o mesmo tom.

Enquanto a lei não é votada, uma ação direta de inconstitucionalidade 4815, feita pela Associação Nacional dos Editores de Livros, deverá ser apreciada no Supremo Tribunal Federal. Eles pedem que os artigos 20 e 21 sejam reinterpretados para evitar cerceamento à liberdade de expressão. A relatora, ministra Cármen Lúcia, marcou audiência pública sobre o assunto nos dias 20 e 21 de novembro.

O Vida&Arte Cultura procurou legisladores, historiadores, jornalistas, advogados para discutir o assunto e ajudar a entender como a lei impacta as várias áreas do conhecimento. O jornalista Ronaldo Salgado, o historiador Américo Souza e o advogado Humberto Cunha aceitaram o convite. O deputado Newton Lima também, mas até o fechamento desta edição não havia encaminhado o texto.

Os cantores Djavan e Fagner foram procurados, mas recusaram o convite. O primeiro, porque está em turnê; o segundo, porque, segundo sua assessoria, não se pronuncia sobre o assunto. A escritora Alice Ruiz, viúva de Paulo Leminski, também negou o convite por motivos de agenda. Lavigne foi convidada. A assessoria dela afirmou que o convite estava sendo analisado. Até o fechamento desta edição, não houve retorno.
 
Index de livros proibidos
Roberto Carlos em Detalhes (Planeta, 2006)
Paulo Cesar de Araújo
O cantor entra com ações na Justiça contra a editora e contra o autor do livro lançado no fim de 2006. Na audiência de conciliação, no ano seguinte, a editora concordou em recolher definitivamente a tiragem de 10.700 exemplares. O músico ficou incomodado com trechos que tratavam de seu envolvimento com a cantora Maysa e do acidente com sua perna.

Noel Rosa - Uma Biografia
(Editora Unb, 1990)
João Máximo e Carlos Didier
Lançado em 1990, o livro foi comercializado durante quatro anos. As tentativas de reedição não vingaram. A partir de 2001, quando a viúva Lindaura morreu, sobrinhas do compositor passaram a reivindicar a herança dele, alegando que ela nunca havia sido casada com o sambista e argumentando que os autores invadiram a privacidade da família ao falar dos suicídios do pai e da avó de Noel. A pedido delas, a Justiça proíbe a edição do livro desde 2004. 

Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa (LGE, 2007)
Alaor Barbosa
A Justiça proibiu a venda da biografia em 2008 por considerar que o trabalho contém erros e feriu direitos autorais. A filha do escritor, Vilma Guimarães Rosa, pondera que, diferente do que está na biografia, o pai não considerava a língua portuguesa “inferior”. A Editora Nova Fronteira defendeu que a LGE não poderia ter reproduzido trechos dos trabalhos de Rosa sem autorização.

Lampião - O Mata Sete (Editora do autor, 2011)
Pedro de Morais
O livro defende a tese de que Lampião era homossexual e Maria Bonita, adúltera. A Justiça proibiu o trabalho para “proteger a honra e a intimidade da requerente e seus genitores”. Segundo o juiz, para provar que Lampião era homem “covarde e violento”, o biógrafo poderia ter investigado e narrado “vários fatos públicos e notórios”.

Gilded Lily (Harper Collins, 2010)
Isabel Vincent
O livro sobre a bilionária Lily Safra nem chegou a sair no Brasil, mas a Justiça brasileira já o proibiu em decisão liminar de agosto deste ano. Para a juíza, há trechos da biografia que ofendem a honra de Artigas Watkins, o falecido pai de Lily. Segundo a autora do livro, Watkins está ligado ao episódio da misteriosa morte do empresário Alfredo Monteverde, marido de Lily em 1969. Caso descumpram a decisão, a editora e a jornalista têm de pagar R$ 100 por cada exemplar vendido.

Paulo Leminski — O Bandido que Sabia Latim (Nossa Cultura, 2013)
Toninho Vaz
A família do poeta encasquetou com a nova edição do livro que já havia sido publicado em 2001. Vaz acrescentou um parágrafo sobre o suicídio de Pedro, irmão de Leminski. A narrativa veio de um vizinho de quarto que encontrou o corpo de Pedro, em 1986. A família mandou uma carta à editora justificando que o trecho era “depreciativo”. Vaz entrou na Justiça para conseguir publicar o trabalho.

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