Estado
laico esquecido, religião oficial consagrada
Ninguém lhe roubará o título de figura mais
humana, simpática e mais calorosa do mundo. Quintessência da bonomia e da
lhanura. Esses galardões o papa Francisco conquistou no seu primeiro périplo
internacional, aqui, no Brasil, e o manterá, esperamos, por um longo tempo.
Percebeu a bagunça na organização do evento e
generosamente a atribuiu a si, acobertando involuntariamente a
irresponsabilidade embutida na incúria e na incompetência dos anfitriões.
Por outro lado, a visita do sumo pontífice,
embora riquíssima em matéria de provocações e estímulos de ordem moral e
política, não conseguiu nos aproximar da discussão direta sobre um dos
problemas centrais do mundo contemporâneo: o poder religioso e a ausência de um
contrapoder democrático para contrabalançá-lo. Em outras palavras: a questão do
laicismo do Estado continuará fermentando, adiada e explosiva.
Com a sua visível obsessão pela
transparência, o papa Francisco tentou lembrá-la no discurso dirigido à
sociedade civil, no belíssimo monumento à cultura que é o Theatro Municipal do
Rio de Janeiro (sábado, 27/7). Textosurpreendente, em todos os sentidos –
enfatiza a “cultura do encontro”, valoriza uma “humanização integral”, prega
uma “democracia muito além da lógica da representação”, propõe um “humanismo na
economia”, chega a louvar um Estado laico, “sem assumir como própria qualquer
posição confessional”, porém só admite nessa igualdade os santificados por
alguma crença religiosa.
E nosotros,hermano Jorge Mario Bergoglio?
Nós, agnósticos, descrentes ou não-crentes,
nós os que levamos às últimas consequências a condição de pensantes, nós os que
duvidamos não somos filhos de Deus? Este observador sempre imaginou que os
céticos e até mesmo os ateus seriam os preferidos dos pastores de almas porque
têm a coragem para questionar e adiantar-se ao rebanho.
Como democratas intransigentes e integrais,
respeitamos a presença daquilo que o papa Francisco denominou “fator religioso
na sociedade”, mas como humanistas, herdeiros do Renascimento e do Iluminismo –
e não apenas na economia – sonhamos com algo mais abrangente, um laicismo
autêntico, legítimo, capaz de valorizar aqueles que não necessitam de
intermediários para aproximar-se de Deus, nem se curvam ou cultivam dogmas e
tabus.
Estimativas inflacionadas
Foi um discurso rico, estimulante sob o ponto
de vista filosófico e algo desafiador sob o ponto de vista político por
escancarar a percepção de que o laicismo dos crentes nunca será absoluto,
sempre relativizado: segrega os descrentes, não lhes oferece o mesmo
espaço-cidadão.
A cobertura do discurso nas edições de
domingo (28/7) só agravou a noção de que nosso país adota uma religião oficial.
Apenas a Folha de S.Paulo tentou valorizar com um subtítulo o parágrafo sobre
laicismo do discurso pontifical. Os demais se contentaram em reproduzir
burocraticamente a íntegra. E estamos conversados.
Na segunda-feira (29), nenhum opinionista deu
sequência à opinião do papa Francisco, exceto o jornalista Luís Paulo Horta,
que dividiu com o também jornalista Frei Betto o recanto de opinião do caderno
diário do Globo sobre a Jornada Mundial da Juventude (JMJ, ver aqui).
A grande verdade é que nossa imprensa não é
laicista, nem laica, não se ocupa/preocupa com secularismo ou a isonomia no
Estado de Direito. Nunca o fez. Exceto no período 1808-1822, quando, a exemplo
de Hipólito da Costa, alguns jornalistas-fundadores assumiam-se como maçons e,
mais tarde, nos albores da República, quando os positivistas defendiam a
rigorosa separação entre Igreja e Estado.
Hoje, a forte penetração do Opus Dei nos grandes
e médios jornais brasileiros, tanto nos comandos intermediários como na cúpula
das entidades corporativas, não permite nem permitirá que o debate sobre o
laicismo possa prosperar e ser incorporado à agenda para o aperfeiçoamento
democrático.
A prova mais recente foi a cobertura da
visita do papa Francisco não apenas intensa, extensa e pouquíssimo isenta como
também nada pluralista. Aliás, assumidamente devocional e engajada. Quando a
mídia não assume os princípios de tolerância e respeito às diferenças, o Estado
adota o mesmo comportamento e incorpora os mesmos favorecimentos.
Jornais impressos não são obrigados a ser
equilibrados, mas caso pretendam uma imagem de credibilidade deveriam tentar
posturas mais naturais, equidistantes. Porém a TV, sobretudo a TV aberta, é uma
concessão pública, do Estado, e, como tal, não pode estar atrelada a uma
religião, muito menos transmitir cultos religiosos ao vivo em versão integral.
Não foi o que aconteceu com a cobertura da
homilia do papa na quinta-feira (25/7), pela GloboNews, transmitida ao vivo de
Copacabana com os/as âncoras in loco, tiritando de frio, porém devidamente
aquecidos pela fé religiosa.
Também a via-crúcis, encenada na mesma
Copacabana, foi transmitida integralmente (sem comerciais) pela Rede Globo, em
TV aberta, ao vivo, na noite de sexta-feira. O único jornalista a registrar o
pecado foi Nelson de Sá, da Folha (sábado, 27/7). A Rede Globo não ofereceu
explicações. E ninguém cobrou. Nem a Folha, embora o jornal tenha sido o único
veículo a contestar as estimativas absurdamente inflacionadas divulgadas pelos
organizadores no tocante ao número de participantes dos diferentes eventos da
Jornada.
Dupla de gigantes
Ao contrário do que aconteceu na Copa das
Confederações permeada por críticas e questionamentos, o noticiário geral da
JMJ foi energizado pela devoção. Até mesmo as tremendas falhas de organização e
logística da prefeitura do Rio foram perdoadas. No balanço final apresentado
pelo prefeito Eduardo Paes na segunda-feira (29) ele se autoconferiu a nota dez
e ficou por isso mesmo. Assim se constroem factoides e ilusões.
O natural entusiasmo dos jovens peregrinos e
a emoção dos cariocas extasiados com a figura benevolente do pontífice foram
sutilmente utilizados para maquiar a imperdoável improvisação. A ausência de
acidentes ou incidentes nas colossais concentrações humanas nas areias de
Copacabana não pode ser tomada como façanha das autoridades. Resultaram da
índole de um povo simples, crente, fascinado pelos espetáculos, atraído por uma
intensa, demorada e perfeita cruzada motivadora.
Seus autores: a dupla de gigantes da
comunicação devidamente irmanados: a igreja católica e a Rede Globo.
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