domingo, 27 de outubro de 2013

E agora Arnaldo?

Capa - Edição 805 (home) (Foto: ÉPOCA)
A vida dele vale tanto quanto a sua?
Explode no Brasil a violência que opõe os defensores de testes científicos com animais àqueles que querem proteger os bichos a todo custo.

Um dos cientistas mais brilhantes do planeta, o britânico Colin Blakemore começou sua carreira fazendo algo que a muitos pareceria uma inadmissível crueldade: ele costurava os olhos de gatinhos recém-nascidos. Fez isso por anos em seu laboratório na Universidade de Oxford, onde é hoje professor de neurociência. Ele privava totalmente os bichinhos da visão para observar como se comportaria, nessas condições, uma parte específica do cérebro deles, o córtex. 

A pesquisa foi fundamental para entender a forma mais comum de cegueira infantil, a ambliopia, e ajudar a preveni-la. Estima-se que existam no mundo 15 milhões de crianças menores de 5 anos de idade com essa doença. A partir da observação do desenvolvimento do cérebro dos gatinhos, Blakemore também ajudou a revelar a capacidade de as conexões nervosas se reorganizarem. 

Conhecido como “plasticidade cerebral”, esse conceito ajuda a entender por que pessoas que sofreram algum tipo de lesão neurológica, como um derrame, recuperam a capacidade de se movimentar e falar. A plasticidade também explica como se forma a memória e como aprendemos a ler e escrever.

Pela importância das duas descobertas, Blakemore se tornou um dos mais poderosos e respeitados cientistas do mundo. Ao mesmo tempo, virou a figura mais odiada pelos ativistas dos direitos animais do Reino Unido. Sua vida tornou-se um pesadelo. Passou a receber pacotes de falsas bombas endereçadas a seus filhos. 

Era constantemente abordado e insultado na rua por ativistas mascarados. Outros, com e sem máscara, se reuniam diariamente em frente de seu portão e hostilizavam sua família. Sua mulher teve depressão e tentou suicídio. Blakemore foi acusado por uma vizinha de roubar seu gato e guardá-lo no congelador de sua geladeira. Por causa das ameaças de invasão para resgatar o tal gato, Blakemore obteve na Justiça uma ordem que a mantém a 100 metros distante de sua casa. 

Certa vez, jogaram um produto químico em seu carro e atingiram o gato que pertencia a seus filhos, causando queimaduras severas. Por mais de uma década, os ataques foram constantes. Hoje, diminuíram. Sua casa, ainda, tem botões de pânico, fechaduras triplas e um quarto secreto, onde ele pode se esconder com a família em caso de invasão.

Grupos radicais que afirmam defender os direitos dos animais e usam táticas terroristas para passar seu recado são comuns na Europa e nos Estados Unidos há pelo menos duas décadas. O britânico Frente pela Libertação dos Animais (ALF, na sigla em inglês) é um dos mais violentos. Um de seus principais ativistas, Greg Avery, está preso desde 2009, com uma sentença de nove anos, por ter articulado uma campanha de intimidação criminosa contra um laboratório de testes farmacêuticos. 

Os ataques eram feitos contra os funcionários e seus familiares. Seu grupo chegou a mandar cartas anônimas para vizinhos de um cientista, “denunciando-o” como pedófilo. A ALF pode ser considerada a grande inspiradora do ataque recente ao Instituto Royal, em São Paulo, um dos cinco centros de referência brasileiros para pesquisas de medicamentos em animais.

Na madrugada do dia 18, sexta-feira, diante dos olhos complacentes da polícia, os ativistas entraram no prédio do Instituto Royal, no município de São Roque, e soltaram 178 cães da raça beagle, usados em testes de remédios para doenças como câncer, diabetes, hipertensão e epilepsia. Também levaram sete coelhos. Eles afirmam que os animais sofriam maus-tratos – o Instituto Royal nega. As pesquisas feitas ali estavam dentro das leis e dos protocolos científicos estabelecidos pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. 

Com os bichos, sumiram documentos e pen drives com dados dos experimentos. O laboratório foi depredado. Os invasores quebraram equipamentos caros e jogaram substâncias usadas nas pesquisas no chão. “Nunca vi nada parecido em 30 anos de ciência”, afirma João Henriques, diretor científico do Royal. “Testávamos medicamentos para o bem-estar humano, e, agora, uma década de trabalho foi perdida.” 

O médico Marcelo Marcos Morales, coordenador do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) e secretário da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, afirmou o seguinte sobre o episódio: “Um trabalho que demorou anos para produzir foi jogado no lixo. O prejuízo é incalculável para a ciência e para o benefício humano”.

O caso do Instituto Royal não foi o primeiro ato de violência dos defensores de animais no Brasil. A ALF se gaba de ter invadido no passado laboratórios da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de Santa Catarina. No primeiro, para sabotar pesquisas sobre malária. No outro, impedindo experimentos com animais para tratamento de tuberculose. No mundo todo, a ALF contou 224 ações pró-animais em 2012. Neste ano, ocorreram 192. 

O site Bite Back (Morda de volta) acompanha o avanço da guerrilha contra a ciência a partir de um site hospedado na Malásia, onde a Justiça ocidental não pode atingir seus editores.

O assalto às instalações do Instituto Royal, que parece ser mais um eco da onda de manifestações violentas que varrem o país desde junho, fez desembarcar no Brasil, com barulho, uma discussão ética e científica que pode ser resumida numa única pergunta: é correto usar animais em experimentos para salvar vidas humanas? A resposta, embora nem todos a enxerguem com clareza, é: sim – sem sombra de dúvida.

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