A classe média vai ao inferno
As metrópoles
se tornaram ambientes hostis a qualquer um que precise se deslocar.
Era uma vez o
sonho de morar na grande cidade. O paraíso das oportunidades, do emprego bem
remunerado, do hospital equipado e do acesso mais amplo aos serviços públicos.
O centro do lazer cultural e do bem-estar. A promessa da mobilidade social e
funcional.
A metrópole
virou megalópole e, hoje, São Paulo e Rio de Janeiro se tornaram ambientes
hostis ao cidadão de qualquer classe social que precise se deslocar da casa
para o trabalho. As “viagens” diárias dificultam conciliar família e profissão.
Os serviços públicos são muito ruins. E o transporte coletivo – negligenciado
por sucessivos governos como “coisa de pobre” – é indigno.
Hoje, mais da
metade da população (54%) tem algum carro. O Brasil privilegiou a indústria
automobilística, facilitou a compra de veículos, e a classe média aumentou em
tamanho e poder de consumo. Todos acreditaram que chegariam ao paraíso. Ficaram
presos no congestionamento.
Quem mais
fica engarrafada nas ruas é a classe média, segundo o Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada). A pesquisa, com base em dados de 2012, revela que
os muito pobres e os muito ricos gastam menos tempo no deslocamento
casa-trabalho do que a classe média.
Os ricos, porque podem morar perto do
trabalho – sem contar os milionários e os governadores, que andam de
helicóptero. Os muito pobres, sem dinheiro para a passagem, tendem a se
restringir a trabalhar bem perto de onde moram ou acordam às 4 horas da manhã
para evitar congestionamento. Como não se investiu em trem e metrô – muito
menos em sistemas inteligentes de transporte –, estouramos os limites da
civilidade. E que se lixem os impactos ambientais, a poluição e a rinite.
Nesse
cenário, qualquer falha, incidente, obra, desastre ou atropelamento transforma
o caos “normal” em catástrofe. Tombou a carreta? O ônibus atropelou o ciclista?
O trem sofreu pane? O bueiro explodiu? O cano estourou? A linha de nosso
reduzido metrô enguiçou? O asfalto cedeu? Os motoristas de ônibus pararam por
melhores condições? Pronto, não se chega mais a lugar nenhum. Até os atalhos se
tornam sucursais do inferno.
Hordas de
passageiros brigam para entrar num vagão, derrubam idosos, não têm cuidado com
as crianças e as grávidas. Alguns se transformam em Black Blocs sem máscaras e
depredam. Motoristas se fecham e se xingam uns aos outros. Esse cotidiano
penoso torna o cidadão ao lado um inimigo, um adversário. É preciso chegar à
frente dele, roubar seu lugar.
Vivemos uma
situação de guerrilha urbana diária, provocada pela falta crônica de
planejamento e a ausência de investimentos públicos em serviços de qualidade.
Governos sucessivos erraram nas prioridades e no modelo de desenvolvimento.
Somos o país da improvisação e precipitação.
“Investir em
transporte de massa, em trem e metrô, criar sistemas articulados e decretar o
fim do império do automóvel particular é uma providência imediata”, afirma o
urbanista Augusto Ivan, nascido em Minas e radicado no Rio. “Quando surgiu, o
automóvel era chamado ‘carro de passeio’. Deveria voltar a ser apenas isso. Só
assim mudaremos o cenário pavoroso de congestionamento. Precisamos taxar a
circulação de carros em áreas mais conflagradas, a exemplo da Inglaterra, que
estipulou uma ‘congestion charge’. É simples: ou paga para circular ou não
entra.”
O urbanista e
vereador Nabil Bonduki (PT-SP) calcula que, para melhorar minimamente a
circulação em São Paulo, “seria preciso retirar 25% dos carros das ruas”. Não
dá para fazer isso sem criar um transporte coletivo de qualidade. “Nem falo
apenas de unidades de trens, metrôs e ônibus. Mas de um sistema, que inclui até
calçadas e iluminação, além de conexão. Um sistema que a população considere
seguro e confortável.” A aglomeração excessiva em cidades segregadas, um
fenômeno típico de Terceiro Mundo, obriga a longos deslocamentos. “Da porta
para dentro de casa, a classe média melhorou muito de vida. Mas o espaço
público não acompanhou a melhoria.”
As grandes
cidades brasileiras deixaram de ser cidades há muito tempo, diz o urbanista
Luiz Carlos Toledo. “Hoje são conglomerados metropolitanos com problemas
estruturais. Nossas grandes cidades estão parando. A ponta do iceberg são os
engarrafamentos, mas, como nas montanhas de gelo, o buraco está literalmente
mais embaixo, onde passam os canos que nos abastecem de água, retiram o esgoto
das nossas casas e recebem as águas pluviais.
Tudo isso, e não só a mobilidade,
está indo para o buraco pela cegueira dos governantes, pela ganância dos
especuladores e por todos nós, que acreditamos que existirá sempre um jeitinho
para corrigir esses problemas, ou tempo para uma mudança de rumos.” É o que diz
Toledo – e eu assino embaixo.
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