Álcool e mulheres, uma combinação
devastadora
A glamourização do álcool, a ditadura
da magreza como passaporte para a aceitação social e a exposição da vida
instável das bad girls do show bizz inspiram milhares de adolescentes.
Na novela "Viver a Vida", exibida recentemente pela
Rede Globo, duas situações antagônicas podiam ser vistas em cena: de um lado, o
merchandising escancarado de bebidas, uma vez que o protagonista Marcos (José
Mayer) vivia com um copo na mão, e, de outro, a personagem Renata (Bárbara
Paz), uma modelo alcoólatra e anoréxica, com penteado emprestado da cantora Amy
Winehouse. O exemplo da ficção ilustra o que ocorre na vida real.
O
psiquiatra Carlos Salgado, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool
e outras Drogas (Abead), alerta sobre a tolerância à bebida. "Bebendo e
repetindo padrões e valores dos 52% de brasileiros que bebem, as mulheres
garantem o mercado da bebida em nosso país. Não é só no comercial bem humorado
que elas fazem presença. É também na elegância discreta das rodas sociais e
familiares que a indústria da bebida as tem como ponta de lança. Ao beber, as
mulheres realizam o desejo de empresários ambiciosos e legitimam o álcool como
bem incontestável, o que é uma deslavada mentira."
Drunkorexia,
segundo a psiquiatra Patricia Hochgraf, do Programa de Atenção à Mulher
Dependente Química (Promud), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas de São Paulo, é uma denominação sem classificação médica. "O
termo foi cunhado por um jornalista do The New York Times. Seria como um
subtipo da anorexia, que fica na fronteira entre transtorno alimentar e
dependência química."
De acordo
com a especialista, o abuso do álcool é mais comum entre pessoas que comem
compulsivamente. "Mas a parcela com anorexia bebe de barriga vazia, troca
as calorias da comida pelas calorias vazias do álcool. Não comer acaba sendo
uma espécie de compensação para poder beber depois. Há também quem use o álcool
para tirar a fome, como se fosse uma técnica emagrecedora. Não basta uma
latinha de cerveja, mas muitas." Ela observa que o organismo da mulher é
diferente. "Há uma concentração maior de gordura e menor de água e
desidrogenase, enzima que metaboliza o álcool e protege o fígado contra seus
efeitos nocivos", alerta.
Anorexia e
dependência química são dois problemas graves e distintos, a serem tratados a
longo prazo, contando-se recaídas, diz a especialista. O tratamento é feito com
terapia comportamental e acompanhamento nutricional para controle do transtorno
alimentar e do alcoolismo, o que exige trabalhos de grupo, reuniões do
Alcoólicos Anônimos e avaliações clínicas.
Para Maria
Del Rosario, médica nutróloga e diretora da Associação Brasileira de Nutrologia
(Abran), o consumo de álcool estaria ligado a uma maior aceitação social.
"Esta realidade é comum entre homens e mulheres de 18 a 25 anos, sendo
mais vulneráveis as estudantes universitárias. Estudos apontam um porcentual de
35% de abuso de álcool na bulimia nervosa, e 25% na anorexia nervosa." Segundo
ela, em geral, as meninas começam a beber de brincadeira, aumentando as doses a
ponto de se tornarem dependentes.
Os graves
distúrbios alimentares, que podem ser decorrentes da drunkorexia, provocam
complicações cardiovasculares, digestivas, endócrinas, hematológicas e ósseas.
Desnutrição, desidratação, hipoglicemia e confusão mental também podem estar
presentes no quadro. "O efeito do álcool é devastador, causando
complicações gastrointestinais, hepáticas, neurológicas e psiquiátricas."
As
consequências informa a nutróloga, são distúrbios nutricionais importantes, com
mudanças orgânicas, como doenças neurológicas, anemia, distúrbios menstruais,
alterações da tireoide. Para prevenir, cabe aos pais observarem o comportamento
alimentar dos filhos.
Web, um
clube. Vanessa Alckmin Reis, mestranda em
tecnologias da comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, abordou o
tema em sua tese de mestrado de 2009, intitulada Websites Pró-ana e mia, redes
sociais e suas transformações. Em seu estudo, observa que o movimento
pró-anorexia e pró-bulimia surgiu na internet em 2000, inicialmente nos Estados
Unidos e Inglaterra, espalhando-se rapidamente para outros países.
No Brasil,
segundo o levantamento, os primeiros blogs surgiram em 2002. Dois anos depois,
foram criadas comunidades virtuais para reunir as bulímicas e anoréxicas, tanto
aquelas que estão em tratamento quanto as que querem continuar nessas
condições. "Protegidas pelo anonimato, as seguidoras da ‘ana’ e ‘mia’
(apelidos carinhosos dados, respectivamente, a anorexia e bulimia), encontraram
nos blogs, fóruns e sites de relacionamentos lugares nos quais poderiam falar
sobre uma parte de suas vidas que, na maioria das vezes, é silenciosa: a
relação complicada com a alimentação e a imagem corporal." Ainda segundo o
estudo, com idades entre 13 e 17 anos, as mulheres são a grande maioria no
universo dos distúrbios alimentares (os homens chegam a 10%).
Basta dar
um giro pela internet para encontrar relatos sobre a complicada relação com a
comida e a imagem corporal. Para não caírem em tentação, além de usarem frases
de efeito - "coma para não morrer, mas não viva para comer",
"morrer, lutando"-, anas e mias alimentam seus blogs e páginas nas
redes sociais com imagens de celebridades esquálidas que admiram
("thinspiration", como elas chamam), e fotos de saboneteiras ossudas
(collar bones).
Rigorosas
com as calorias, trocam dicas de como perder peso rapidamente, usando as siglas
NF (no food) e LF (low food). Falam em atingir metas irreais, como chegar aos
39, 40 quilos. Quando comem demais depois de dias em jejum, sentem-se culpadas.
Algumas mencionam o uso de pulseiras em cores que distinguem as
"anas" das "mias". Uma delas descreve no Orkut a utilidade
do acessório: "olhe para sua pulseira e lembre-se de que você é mais forte
que um pedaço de bolo."
Mulheres
bebem em jejum e usam a ressaca para driblar a fome, diz psicoterapeuta. As causas
que levam à drunkorexia são físicas, genéticas, familiares e psicológicas,
resume o psicoterapeuta Marco Tommaso. "Entre os fatores desencadeantes,
estão a valorização do corpo magro pela mídia e a tolerância social à
bebida." A faixa etária varia, mas
concentra-se entre os 20 e 40 anos. A característica principal desse grupo é a
restrição calórica aos alimentos em função da bebida alcoólica. Algumas alegam
que o álcool reduz a fome. Beber em jejum e usar a ressaca do dia seguinte à
balada como meio de driblar a fome são práticas frequentes.
"Muitas
apresentam o ‘binge drinking’, episódios de compulsão por bebida em curto
período de tempo, podendo ou não provocar o vômito para beber mais e evitar
comida." Marco Tommaso, que dá assistência psicológica a duas agências de
modelos, diz que adolescentes são altamente influenciadas pela mídia. "De
nada adiantam movimentos anti-anorexia se, nas passarelas, o que se vê são
modelos com medidas irreais."
Drunkoréxicas.
Depois de ter tentado vários regimes sem solução, Renata (nome
fictício), de 16 anos, decidiu radicalizar. Com 1,60 metro de altura e 55
quilos, quer chegar aos 46 quilos. "Faço como um amigo meu e como de três
em três dias." Para despistar os
pais, finge que come. Depois cospe a comida no guardanapo e usa roupas largas.
Seguindo a dieta que copiou de um blog, só se alimenta de uma bolacha água e
sal light pela manhã e muita água; no almoço, alface, peito de peru e um
iogurte com 30 calorias. No jantar, uma fatia de pão integral, uma de queijo
minas, três ou quatro uvas. Se extrapola, toma laxante.
"Quando
sinto tontura, como uma maçã pequena que coloco na bolsa para
emergências." Renata sabe dos riscos, mas morre de nojo de ficar uma
"gordaaaa". No fim de semana, não abre mão de beber algumas latinhas
de cerveja ou vodca ice. Prefere a bebida à comida. Mari (nome fictício), 20
anos, universitária, às vezes acorda e toma uma lata de cerveja em jejum para
despistar a fome. A bebida, diz, é seu ponto fraco. Faz cálculos mirabolantes
para não abrir mão dela. "Se estou deprimida, como tudo de forma
compulsiva. Acho que é uma punição. Quando estou bem, esqueço a comida."
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