Viva o crime
brasileiro
O
Brasil nunca foi tão rico em toda a sua história quanto agora. A criminalidade
nunca foi tão grave. É uma relação de causa e efeito? Pode ser. Não se tem
ainda, no entanto, como demonstrar o nexo de causalidade. Mas pode-se chegar a
uma conclusão surpreendente — e inédita: o crime se estratificou no Brasil.
O
crime dito de colarinho branco se sofisticou na mesma medida em que passou a
movimentar valores em dinheiro e símbolos de poder que colocam o Brasil no topo
do ranking nesse segmento. Certamente numa posição mais avançada do que o 6º
lugar em que o país está dentre os PIBs mundiais.
O
recorde anterior era o 8º lugar, conquistado na década de 1970, com o
"milagre econômico" do regime militar. Depois o Brasil regrediu
quatro posições, até recomeçar a subir, superando seis países, depois do Plano
Real.
Os
criminosos de colarinho branco não têm mais por hábito matar. Eles liquidam
moralmente, ou financeiramente, graças às armas que a mais alta tecnologia lhes
fornece. Podem ter que usar o recurso extremo, mas, quase sempre, só no
desespero.
Litigam
a partir de suas mesas, diante de um computador, com assessorias visíveis e
invisíveis (estas, as mais eficientes, principalmente as não assumidas ou não
declaradas).
O
exemplo mais recente e acabado desse modo de proceder é o do suposto bicheiro
Carlinhos Cachoeira. Ele não se enquadra no modelo de um Anísio Abrahão ou
Castor de Andrade. Conta com senadores, deputados federais, governadores,
empresários, jornalistas.
Está
conectado a empresas muito maiores, dentro e fora do país. Mesmo alvejado por
disparos verbais e ameaças materiais, se mantém calmo. Sua munição é tão vasta
quanto imprevisível. Seu arquivo eletrônico é seu seguro de vida. Embora sem
garantia certa ou cobertura definida.
Mas
há um crime de rua, violento e sangrento, como "nunca antes", para
usar o bordão do ex-presidente Lula, que muito contribuiu para esse
"aperfeiçoamento" maligno com seu populismo de resultados, mais
eficiente e mais inescrupuloso do que o populismo amador e romântico dos políticos
da República de 1946. O do líder sindical é, et pour
cause, profissional. Sublimemente (ou subliminarmente) mafioso. O
Brasil dos nossos dias é uma recriação monumental da Chicago do entre guerras
mundiais do século XX.
Vem
do Maranhão o mais recente exemplo dessa criminalidade. Na noite do dia 23 um
homem desceu de uma moto na qual era o carona, com a cobertura de uma segunda
moto. Caminhou calmamente até um dos restaurantes da frequentada e admirada
orla litorânea de São Luiz do Maranhão, ponto turístico nacional.
Foi
até uma das mesas, tirou uma pistola calibre 40, preferência policial por sua
potência e eficiência. Mirou no ocupante de uma das mesas, que estraçalhava
caranguejos, como costumam noticiar as colunas sociais.
Fez
seis disparos com direção certa e objetivo definido: matar sem piedade,
tripudiar sobre a morte. Duas balas atingiram a cabeça da vítima. Outras duas,
o pescoço. E mais duas a região do coração.
Sangue
espirrou, carregado de massa encefálica, pele e osso. Os tiros não foram apenas
para matar: a morte devia servir de mensagem a quem interessar pudesse.
O
assassino olhou em torno, disse palavras ameaçadoras para o garçom, que
testemunhara estupefato o crime, guardou a arma e saiu com a mesma calma da
chegada. Não escondeu o rosto nem teve pressa em fugir.
Subiu
na moto e sumiu, sempre com a cobertura do segundo veículo (inspeções
constantes a motocicletas devia ser uma estratégia sagrada no Brasil). Não
tinha receio em ser identificado nem, talvez, preso. Se for preso, acredita,
será por pouco tempo. Tem cobertura — e da grossa.
A
vítima, Décio Sá, tinha 42 anos. Era jornalista havia muito tempo. Desde 2006
escrevia um dos muitos blogs criados por maranhenses que não têm onde se
manifestar, querem se informar e informar os outros. É a alternativa à grande
imprensa, dominada pelos grupos políticos e empresariais que mandam no
Maranhão, o Estado mais pobre (alguma relação com o fato de ser,
geograficamente, Meio Norte com o Piauí, metade Amazônia e metade Nordeste?).
Décio
criou a imagem de jornalista investigativo, eficiente, audacioso e corajoso,
graças ao blog. Mas trabalhava havia tempo suficiente no maior grupo de
comunicação do Estado. Sob essas outras vestes, suscitava dúvidas quanto à sua
independência e autonomia.
Ele
era um repórter político especial do Sistema Mirante de Comunicação, afiliado à
Rede Globo de Televisão. e, em particular, do jornal O Estado do Maranhão, líder dos
impressos maranhenses.
Esses
veículos são dirigidos de perto pelo maior político do Maranhão, o
ex-presidente da república e presidente do Senado, José Sarney. Nada de
importante sai nos órgãos de comunicação do também ex-governador sem sua
aprovação. O noticiário político, então, é criação sua. Nem sempre para
reproduzir a verdade. Às vezes, também, para mandar recados.
As
oligarquias no Maranhão não costumam aparecer na literatura que Sarney,
igualmente imortal da Academia Brasileira de Letras, costuma cometer. Nem é
preciso: a ficção do beletrista senador é acanhada demais para dar conta de
realidade de tal magnitude. Tão impressionante que dispensa pitadas de
invenção. Basta olhar com olhos de ver e mãos de reproduzir a cena com a
fidelidade temerária de um herói. Talvez logo depois morto.
Décio
Sá falava ao celular, em frente aos caranguejos cozidos, seu prato de
resistência. Quando recebeu os tiros, o jornalista falava com Aristides
Milhomem, mais conhecido por Tatá, vice-prefeito do município de Barra do Corda
e irmão de Carlos Alberto Milhomem, deputado estadual.
Sem
conseguir restabelecer a ligação, Tatá acionou Fábio Câmara, suplente de
senador e amigo de Décio, que estivera em contato com outro amigo, um personal trainer, executado pouco
antes, no mesmo dia, num ponto mais distante da faixa valorizada da capital
maranhense. E que também iria para o bar Estrela do Mar para a caranguejada.
A
última postagem de Décio no seu blog foi sobre o assassinato de Miguel Pereira
de Araújo, o Miguelzinho. Ele foi morto em 1997 e o julgamento seria realizado
em Barra do Corda, que forma com Presidente Dutra e Grajaú, o principal reduto
de pistoleiros no Maranhão.
O
problema é que das 25 pessoas sorteadas para integrar o corpo de jurados, que
teria sete membros, 25 eram ligadas a Manoel Mariano de Souza. Além de ser
prefeito municipal, ele é pai do empresário Pedro Teles, acusado de ser o
mandante do crime. Seria represália contra o alegado invasor de suas terras.
Pedro é irmão do deputado estadual Rego Teles, do PV.
O
advogado Leandro Sampaio Peixoto, defensor de Miguelzinho, pediu o desaforamento
do júri para São Luiz no mesmo dia da morte de Décio, a quem forneceu cópía da
petição. Nela, previu que o julgamento, se realizado em Barra do Corda, terá
desfecho viciado.
Ele
sabe o que diz: é filho do ex-prefeito Avelar Sampaio, do PTB. Foi Avelar,
quando prefeito, quem cedeu os pistoleiros Moraes Alexandre e Raimundo Pereira
para proteger Manoel Mariano. Na época os dois eram amigos. Rompidos, se
tornaram inimigos. Manoel interrompeu a sucessão no poder da família do seu
(ex) amigo.
Para
as oligarquias que comandam o interior do Brasil, isso é crime. A ser quitado
com outro crime, sem os refinamentos do pessoal do andar de cima, que circula
de colarinho branco por esses ambientes. O encadeamento é óbvio. O problema é
segui-lo.
Um
leitor, que usou um nome falso (Madureira), fez o único comentário, postado
momentos antes da consumação do assassinato do blogueiro. Concluiu: "tá na
cara que é jogo de cartas marcadas. precisa mais detalhes que esses?? creio que
não !!"
Apesar
do acesso constante ao blog, ainda mais depois do crime, ninguém voltou a se
manifestar. O silêncio é a regra de ouro desses acontecimentos, cada vez mais
frequentes no Brasil oculto. Quem fala muito morre com a boca cheia de formiga,
ameaça uma tirada de humor negro. Muito negro.
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