A cota racial só disfarça o problema
O simples critério racial tende a
provocar uma perigosa distorção. Diferencia os brasileiros pela cor da pele e
não pelos méritos do conhecimento
Em julgamento histórico, por
unanimidade de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou na última
quinta-feira como constitucional a política de cotas raciais como um dos
critérios para ingresso nas universidades. A decisão se deu em razão de
questionamentos quanto à legalidade do modelo, assim como à forma tão pouco
científica com que as instituições aferem a ascendência étnica dos candidatos.
Entretanto, deve-se aduzir à decisão do STF comentários que vão além dos
limites jurídicos para adentrar em aspectos que dizem respeito a outras
políticas públicas de inclusão.
É inegável que, em um país em que
subsistem profundas desigualdades, é essencial que o Estado promova processos
de inclusão. É de sua obrigação criar oportunidades também àqueles que, por
diferentes motivos, não conseguem se aproximar do ideal de igualdade
preconizado pela Constituição e são condenados a permanecer nos estamentos
periféricos da sociedade. Exatamente neste ponto cabe uma ressalva com relação
à decisão do STF: não apenas a população negra seria credora de políticas
públicas compensatórias, devendo ser incluídos nesse rol outros segmentos, como
o dos indígenas.
Que fique claro não se tratar de
olvidar a tragédia que foi a escravidão no país, a dívida social decorrente
dessa chaga, nem o subjacente preconceito racial que, muito embora dissimulado,
lamentavelmente teima em existir. Por outro lado, não há como deixar de
mencionar o positivo processo de miscigenação ocorrido, que permitiu fazer do
Brasil uma sociedade multirracial sem a intolerância vista em outras plagas.
Sob este prisma, mais importante nos parece ser a adoção de medidas para
reduzir as profundas disparidades sociais que segregam milhões de brasileiros,
impedindo-os de ter acesso a uma vida digna, aí incluídos não apenas os
afrodescendentes.
A universidade, não há como negar, é
um símbolo de status e porta de entrada para descortinar a perspectiva de uma
vida socialmente diferenciada. Condição que, por princípio, é um direito de
todos.
Entretanto, é necessário que
busquemos nas origens da desigualdade outros fatores que nos levam
obrigatoriamente a relativizar a ênfase na questão racial do modelo brasileiro.
E o mais importante desses fatores está exatamente no campo da educação
pública. Sabemos todos o quanto é ainda sofrível a qualidade do ensino público
no Brasil – testes internacionais de leitura e matemática evidenciam nosso
atraso no setor.
Tais problemas não atingem
exclusivamente as crianças e jovens negros ou pardos, mas também os alunos
brancos que, em razão de sua condição socioeconômica, são igualmente excluídos
da oportunidade de frequentar o ensino básico privado, que oferece educação de
melhor qualidade. Independentemente da origem étnica, o filtro que os impede de
ingressar nas universidades públicas, muitas delas excelentes –
consequentemente mais concorridas e mais exigentes nos processos de seleção –,
se concentra no baixo nível educacional da escola pública.
O simples critério racial tende a
provocar uma perigosa distorção. Diferencia os brasileiros pela cor da pele e
não pelos méritos do conhecimento acumulado nos bancos escolares. Logo, talvez
mais importante que estabelecer o impreciso regime de cotas raciais é o
investimento que cabe ao governo fazer para melhorar a qualidade do ensino
público básico, de tal modo que brancos e negros, ricos e pobres alcancem
condições iguais de acesso aos níveis de graduação universitária.
Pensar em estabelecer cotas raciais
sem ao mesmo tempo dar solução ao problema principal é o mesmo que eternizar a
aplicação de um remédio apenas paliativo, que deveria ser encarado como
transitório. Que se adote a cota racial como um passo, mas nunca como o único e
permanente. Há outro passo urgente: a universalização do ensino de qualidade.
Este, sim, é o canal para diminuir as desigualdades, diferentemente do outro,
que acentua as diferenças baseado em ultrapassados, moderna e cientificamente
inaceitáveis conceitos de raça.
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1249033&tit=A-cota-racial-so-disfarca-o-problema
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